domingo, 25 de agosto de 2013

Acontece sempre aos personagens

(Por Cinthia Kriemler)

Um dragão exausto. Isto sou eu sentada aqui neste começo de noite gelada, soltando neblina pela boca e pelas ventas. Já aqueci os dedos murchos e a garganta com duas xícaras de chocolate quente com chantilly, raspinha de casca de limão e uma pingada leve de licor. Aceita uma xícara?
Estou escutando músicas antigas, enquanto decido se vou ao cinema ou se abro um vinho, mais tarde, e assisto a um filme em casa mesmo.
Eu vejo o futuro repetir o passado... O tempo não para, não, não para...
Que coisa! O tempo não para é de vender essa imagem de inesgotável. Bobagem. É um grande ilusionista, isso sim; um fanfarrão elegante esse tal de tempo! O que ele faz, e bem, é aplicar recursos. Mas não resiste a um olhar mais de perto, a uma avaliação mais detalhada. De perto, é fácil ver que os acontecimentos, as histórias e as vontades são sempre os mesmos, ciclicamente. Guerras, amores, terremotos, mortes, tudo se repete. Modernizam-se os instrumentos, as palavras e os atores. As tramas, nunca. Uma mesmice. 
Pois saiba você que o tempo sobrevive mesmo é das percepções, como num truque houdiniano. O que eu vejo não é o que você vê. Não vemos na mesma hora. Não nos importamos do mesmo modo a respeito do que vemos. O truque é este: impedir que a gente tenha consciência de que de inesgotável mesmo só as desigualdades das nossas percepções.
Uma vez ou outra, é claro, passeamos, sem querer, pela mesma sintonia, por uma fração de segundos. Déjà vu! — gritamos. — Que déjà vu que nada! É o tempo escorregando na gestão. Mera digressão.
Costumo pensar em cada um de nós como um grande globo de metal, igual ao que se usa nos bingos ou nos sorteios de prêmios. No início de nós, o tempo nos recheou de uma vez com todas as datas e fatos e sentimentos que iríamos precisar para termos uma vida. Mas se tocou que um bom planejamento estende-se a um futuro, e aí decidiu que era melhor liberar uma pedra por vez. Acrescentou o mexe e remexe aleatório do globo para assegurar transparência e criar um pouco de frisson na plateia.
Por isso, o meu bingo nunca é, foi ou será igual ao seu. Eu recebo o amor aos 20; você, aos 35; ele, nunca. Você aprende o sofrimento aos 10; nós, aos 38; eles ainda sofrem. Tudo culpa do mexe e remexe.
Não me importo com o estratagema. Do tempo, só registro uma queixa: para si mesmo, nunca traz velhice; para nós, rugas dolorosas no corpo e na alma. Injustiça!
Ah, não? Você não acha? Deixe ver se eu entendi... Experiência. É assim mesmo que você desculpa o reumatismo que proíbe às suas juntas subir escadas? Segurança é o nome mais interessante que você encontra para o seu platô de conformismos? Está bem. Entrego os pontos. Eu mesma apelidei de “maturidade” o assassinato dos meus sonhos. Aliás, melhor dizer: massacre, porque os exterminei em conjunto para não ouvir mais suas vozes insensatas.
O tal do amor maduro, então, é o pior dos disfarces. Preciso forçar mais a memória, um dia desses, e me lembrar quando foi que aprendi a gritar “Bingo!” na pedra da desistência. Logo eu que nunca dispensei um amor maldito, uma paixão inconsequente, me conformar com um amorzinho morno, centrado, sem tempero?
Pois me escute: o mal é que a gente aceita qualquer coisa depois das rugas. E não adianta reclamar, tipo: Hei! Eu quero aquele olhar que vi na mocinha de ontem, na fila do supermercado. Quero aquela roupa sensual da vitrine do shopping. Quero atravessar a piscina sem perder o fôlego. Reclamar só traz mais rugas.
O que foi? Apavorou-se? Descobriu que lhe furtaram as possibilidades? Finalmente você começou a entender como o tempo é ladrão? Como eu lhe disse, um ilusionista. E você aí pensando que eram seus o amor, a alegria, as gargalhadas e os sonhos! Eu sei como é isso, portanto, não se preocupe, você não é bobo sozinho. Acontece sempre aos personagens.

Ainda dá tempo de me acompanhar numa xícara de chocolate. Mas, se preferir, venha tomar um vinho mais tarde. Afinal, ainda não falamos sobre a melhor parte disso tudo. Aquela onde eu lhe conto que insônia, depressão e amor despedaçado também te abandonam, mudam de corpos.
É o tempo, redistribuindo recursos. Acontece sempre aos personagens!