quinta-feira, 28 de abril de 2011

A virgem de Boa Viagem



     Maria Virginia das Dores. Assim foi nomeada. Ironicamente nascera sob a influência do dia das bruxas, em 31 de outubro de 1910, embora seus pais ou ela própria sequer soubessem que esta data fosse celebrada como tal. Coincidência ou não, uma cigana de passagem pelos arredores neste mesmo dia, em 1932, lhe sugeriu que para que não sofresse as dores de sua virgindade guardada a sete chaves, tentasse trocar em cartório a data do seu nascimento. Trazia azar ao seu destino. Quem sabe invertendo os números, a sorte lhe sorrisse de volta? Afinal, as bruxas gostavam do 13...


     Das Dores não queria saber dessas crendices. Fazendo o sinal da cruz por três vezes, decidiu se confessar ao padre e pagar penitência por ter dado ouvidos à uma feiticeira descalça e cheia de ouro nos dentes que lhe pregou aquela peça por ter sucumbido a curiosidade de saber se iria demorar para casar.
     Desde pequenina sua vida poderia ser resumida em não mais do que poucas linhas. Nascera e fora criada em um pequeno casebre em Boa Viagem. Única filha mulher entre quatro homens, viveu cercada por imposições, pingos nos is, cabresto curto, quase uma coleira colada na orelha. Saía aos domingos com os pais e os irmãos para assistir a missa. Além desse dia esperado, ia até o povoado à pé comprar uma coisa ou outra que fosse indispensável para algum prato que a mãe estivesse preparando caso um de seus irmãos não pudesse ir no seu lugar. Aprendeu a ler e a escrever  para  cantar o hinário e nas suas mãos puras apenas um exemplar da Bíblia Sagrada para folhear.  Seus dias eram iguais, monótonos. Não suportava aquela vida na roça, o cheiro de café coado, aquela umidade interminável que lhe causava uma coceira sem fim dentro dos ouvidos, espirros infinitos e ardência nos olhos.


     A mãe lhe dizia que aquele era seu destino. Cozinhar para os pais e os irmãos até o dia que eles se casassem, e aí sim, deixassem que ela arrumasse um marido para construir sua própria família. Fora isso, tinha que se conformar em cuidar dos seus. Mulheres não tinham voz, nem vez.
     De quando em quando conversava um pouco com outras moças na saída da igreja. Conversas breves, sempre espreitadas pelos olhares castradores dos irmãos; cães de guarda que observavam se ela olhava para além das faces femininas. Os rapazes de sua idade não ousavam pedir sua mão em namoro. Era sabido no vilarejo que seu nome fora escolhido a dedo para que fosse freira um dia. Mas, o destino quis que seus pais mudassem de ideia quando souberam por alguns forasteiros e vendedores que pernoitavam em Boa Viagem, que algumas freiras foram excomungadas e linchadas na capital por terem aparecido grávidas e por terem encontrado covas clandestinas no terreno ao lado do convento. Sabia disso ouvindo por detrás da porta a conversa escandalizada entre sussurros. Naquele dia, sua única esperança de sair daquele lugar e conhecer algo diferente se esvaneceu entre o cheiro de café fresco, que passou a detestar.



     Aos vinte e dois anos, Maria começou a sentir umas quenturas estranhas no corpo logo depois dos dias em que se findava o sangramento. As pontas dos seios queimavam feito fel e até mesmo o tecido da camisola lhe causava arrepios que se misturavam com um calor intenso que se espalhava por entre o meio das coxas. Um dia, assistiu um dos seus irmãos beijando sua esposa e acariciando-lhe a coxa por debaixo da saia. Seu coração disparou, a saliva aumentou em sua boca e sentiu a respiração ofegante. Até o cruzamento entre cachorros lhe causava aquela sensação. Será que aquilo era doença? O que a cigana quis dizer sobre as dores de sua virgindade? Aliás, o que era ser mulher? A negrinha assanhada que trabalhava no casarão do coronel Aguiar, um dia lhe disse que ser mulher era gostoso por demais da conta, mas que ela precisava arrumar um homem para entender. Queria saber mais, perguntar para ela como é que era, mas de imediato se arrependeu dos seus pensamentos e resolveu se confessar com o padre sobre esses pensamentos, sobre a cigana. Pediu permissão à mãe para ir até a pequena igreja no pé da montanha perto do cemitério, no centro da vila que ficava a uns cinco quilômetros de sua casa. A mãe resolveu consentir. Era cedo, os irmãos e o pai estavam no meio de mais um dia de trabalho e além disso, ir à igreja era bom. Não havia nada demais.




    Das Dores continuava pensando no seu encontro com a cigana uma semana atrás e um aperto estranho no seu coração fez com que quisesse se apressar para chegar ao seu destino. O dia amanhecera bonito, de um azul anil, mas aquela hora o tempo se amuou e começou a nublar. Não demoraria para começar a chover.
    A moça chegou até a porta da igreja que de tão pequena, mais parecia uma capela. A porta da frente parecia estar trancada, então ela decidiu ir para os fundos, que daria para uma pequena cozinha. O padre devia estar tomando café com leite naquele horário. Não passava das treze horas.


    Chamou o padre em voz alta, bateu palmas e nada. Esperou um pouco, mas sem obter resultados. Decidiu então seguir a direção de uma brisa fria que lhe assoprou no rosto uma vontade de caminhar entre as sepulturas do cemitério que ficava a alguns metros além do quintal da igreja.



      Após ultrapassar a cerca branca e passar por algumas lápides cinzentas, Das Dores começou a seguir uma trilha que a conduziria até uma capela com pouco mais de dois metros de altura, erguida para que fiéis e parentes das almas que ali repousavam pudessem fazer seus pedidos e orações. Talvez o padre estivesse lá. A portinhola estava aberta e  a medida que se aproximava, gemidos baixos se tornavam maiores e persistentes; gemidos estranhos que não se pareciam com gemidos de dor, mas com algo que ela não sabia ao certo identificar. Resolveu entrar e qual não foi a sua surpresa ao se deparar com o padre sem batina, apenas de camiseta branca, rebolando seus quadris dentro da negrinha sentada de pernas abertas em cima da mesa de cimento, onde vários caixões repousavam antes de serem depositados em definitivo em suas covas. Como que por impulso ela soltou um gritinho estridente de espanto e curiosidade, o que fez com que os gemidos fossem interrompidos e ambos a olhassem com um misto de medo, espanto e confusão.


     Antes que pudesse se recompor e tirar a mão dos lábios, o padre em dois passos a segurou pelo pulso que prendeu com a força de um leão. Começou a puxar o braço e pediu que ele a soltasse. O padre sabia que ela não poderia sair dali após o que havia presenciado. Tinha que pensar rápido, agir rápido. Puxou o corpo dela com violência, de costas para o seu, enquanto lhe tapava a boca com uma das mãos para que não gritasse. Decidiu que a solução seria sufocá-la. Depois pensaria no que fazer.
    Após sentir o corpo mole da moça escorregando entre seus braços, ordenou que a negrinha o ajudasse a levá-la até uma carroça que se encontrava à disposição do padre naquele dia. Era suposto que ele viajasse até a cidade e o coronel sempre deixava que o padre fizesse uso de uma das três que possuía. O coronel devia-lhe favores por fazer vistas grossas a suas falcatruas, seus assassinatos, sua exploração. Em compensação, o vigário tinha acesso a certas mordomias, incluindo os cuidados da negrinha que satisfazia suas necessidades de homem pecador. E se ela abrisse a boca...ah, se arrependeria amargamente.


    Enquanto conduzia a carroça pela estrada deserta, o padre tentava ordenar seus pensamentos nervosos. Decidiu que o melhor seria deixar o corpo na beira de um riacho que ficava no meio do caminho entre a casa da moça e a igreja. Pensariam que a moça havia se afogado. Rapidamente chegaram ao atalho estreito que conduzia ao rio. Pegou o corpo desmaiado em seus braços, enquanto a negrinha vigiava a estrada deserta. O padre colocou o corpo no chão, retirou o calçado e a batina e arrastou o corpo para dentro da água até chegar na metade dos joelhos. Enquanto afogava Das Dores, pedia misericórdia à Deus pelo mandamento quebrado, mas não podia vacilar. A moça se debateu muito antes de morrer, e na sua mente, veio a lembrança da cigana... do aviso... de sua virgindade e de um homem que ela jamais viu.



    E assim começou a circular na região que Maria Virgínia era santa. Morreu virgem, predestinação causada pelo nome, pureza intocada e batizada nas águas da morte precoce. E assim estava escrito na lápide que Naldo lia e relia muitas décadas mais tarde, até o dia em que resolvera resgatar o corpo daquele túmulo, para que sua Maria tivesse o tratamento que jamais alguém pôde lhe dar.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os últimos passos


É pouco o tempo e são poucas as coisas que me restam. Tenho uma dessas doenças incuráveis que matam sem muito alarde. Não há cura, nem tratamento. Também não haveria dor. Viria de repente, como uma bala perdida, um apagão. Essa sentença de morte daria um bom enredo para um filme, se minha vida tivesse algum significado, alguma graça.
O médico, na minha frente, parece constrangido tentando expressar alguma compaixão. Consigo apenas perceber sua impaciência para eu deixar a sala.                                                                        
- Tá bom. Fazer o quê, né? – Eu digo, por não ter mais nada o que dizer, nem o que fazer. Sempre me considerei uma pessoa prática.
Levanto-me, cumprimento-o e saio da sala. Quando a porta do consultório se fecha atrás de mim, percebo que tenho uma liberdade infinita: se eu iria morrer, poderia fazer o que quisesse. Poderia realizar todos os meus últimos desejos. Só então percebo que não tinha nenhum. Meu único desejo era almoçar, já passava de meio dia e eu estava com fome.
            Saí do consultório e fui ao mercado. Ainda ia ter que preparar o almoço.  Resolvi comprar camarões, camarões graúdos. Uma mulher ao meu lado assusta-se com o preço e exclama.
- Os camarões estão pela hora da morte!
“Então são perfeitos para a ocasião.” - penso comigo mesmo e sorrio discretamente da minha piada de humor negro.
            Morava num pequeno apartamento, herança dos meus pais. Não tinha irmãos. Só primos, muitos, espalhados pelo Brasil, alguns até no exterior. Depois que meus pais morreram, praticamente perdi o contato com todos.
Muito tempo depois do almoço, o cheiro de camarão ainda insistia em permanecer por toda a casa. Lembrei-me de minha mãe, ela adorava camarão. Mas só fazia nas ocasiões especiais, que eram tão poucas. Minha mãe era uma mulher de poucas palavras, séria, diligente. Meu pai morrera cedo, lembrava-me pouco dele, quase nada. De repente, me dei conta que eram poucas as minhas lembranças marcantes.
            Resolvi procurar uma caixa com fotografias. Lembro-me de ter visto minha mãe lidando com ela um pouco antes de morrer. Encontrei-as no fundo de um armário, dentro de uma caixa, amarradas com uma fita. Um lugar quase secreto, escondido. As fotos não eram muitas. Algumas pessoas eu não conseguia reconhecer mais. Minha memória era péssima e as fotos antigas. Outras me fizeram lembrar de um tempo em que acho fui feliz. Embora não pudesse perceber com nitidez, as fotos estavam muito desbotadas.
Numa das tais fotografias eu tinha 14, 15 anos. Estava de terno e sorria de braços dados com uma prima linda, minha primeira paixão. Era sua festa de debutante. Como era mesmo o nome dela? Bruna, isso, tão linda. Tanto tempo. Quanto tempo? 20, 25 anos. Teria se casado? Aquela festa fora incrível, pelo menos para mim. Eu que sempre fui tão tímido, e preferia ficar pelos cantos do salão, dancei. Dancei como um profissional. Todos me admiraram. Recordo dos tapinhas nas costas, dos elogios. Nunca mais eu dancei assim. Nunca mais eu dancei. Nunca mais eu bebi como eu bebera aquela noite. Meu primeiro pilequinho. Acho que foi a primeira vez que ingeri bebida alcoólica. Nunca fui de beber. Sentira-me poderoso, leve. Agora, com os olhos fechados, a memória me faz recordar aquele baile com cores muito mais nítidas do que as daquelas fotos. As fotografias não conseguiam ser fiéis à minha emoção. Vejo-me rodopiando na valsa, depois dançando Rock. Rock! Logo eu que morria de vergonha de tudo. As pessoas aplaudindo. Acho que aquela era a memória mais feliz da minha vida.
Resolvo que preciso rever esses parentes distantes, antes que tudo se apague. Quero reviver. Viver o que resta. Vasculho a velha agenda da minha mãe. Faço algumas tímidas e nervosas ligações para alguns parentes distantes e para outros tantos conhecidos. Descubro algumas vagas e reticentes informações. Fico sabendo que ainda vivem na mesma pequena cidade serrana do interior do Estado.
            A cidade era pequena, não mais que 5 mil habitantes, não seria difícil localizá-los.
            Um dos meus poucos bens era o meu carro, um velho e fiel Corcel, muito bem conservado. Gostava dele como quem gosta de uma pessoa. Aliás, ele era a única pessoa de quem eu gostava.
            A cidade ficava a umas três horas de viagem. Não foi difícil, na primeira volta ao redor da pracinha, reconheci a casa do meu tio. Estava um pouco diferente, parecia maior, havia mais um andar. Nervoso, toquei a campainha. Meu coração saltava. Logo uma mulher baixa, atarracada, pele morena e enrugada pelo sol veio abrir a porta.
- Sim? – Perguntou com sotaque nordestino
Minha boca estava seca, não conseguia me lembrar o nome do meu tio, nem da minha tia. Fiquei alguns segundos encarando a mulher na minha frente sem saber o que dizer.
- Sim? – Perguntou de novo, dessa vez, com jeito desconfiado.
Lembrei-me de repente do nome do meu tio.
- Ah, por favor, eu poderia falar com seu Manoel.
- Manoel Vargas?
- Isso!
- Mora mais aqui não.
- Se mudou?
- Não, morreu.
Mais uma vez fico sem saber o que dizer. Resolvo ir direto ao assunto pelo qual estava ali.
- A Bianca ainda mora na cidade.
- Mora aqui não, mora aí em riba.
- Ela está?
- Sei não, eu trabalho para D. Emília, que mora cá embaixo.
Isso, Emília, esse era o nome da minha tia.
- Possa falar com ela?
- Com ela quem?
- Com a D. Emília.
- O senhor é quem?
- Sou o Nélson, sobrinho dela.
- Peraí, um minutinho.
Ela me deixa esperando na porta e ainda a ouço resmungar. “Que sobrinho é esse que nem sabe que o tio morreu.”
Uma senhora gordinha, cabeça branca, óculos de lentes grossas surge na porta arrastando os chinelos. Ela me examina de cima a baixo, parece não me reconhecer.
- Você é o Nélson de onde?
- Do Rio de Janeiro, filho da Guilhermina e do Pedro.
A mulher abre um sorriso e seu rosto se ilumina.
- Ah, claro, mas você não mudou nada. Continua magrinho! Entra, entra.
A casa tem a mesma decoração da última vez que estivera ali. O mesmo papagaio no poleiro rodopia de um lado para o outro, à minha passagem. Parece me reconhecer depois de tanto tempo. A mobília de madeira escura e maciça com os paninhos brancos rendados, os sofás floridos, até o cheiro do lustrador de móveis era o mesmo. Emociono-me com tudo, com cada detalhe. Nem sabia que coisas tão pequenas podiam emocionar tanto. Nem sabia que eu podia me emocionar tanto.
            Eu e a senhora de cabelos brancos conversamos longamente. Ela me faz muitas perguntas que eu não sabia responder direito. Ela me falou de muitas pessoas das quais não me lembrava mais. Finalmente, com o coração na mão, tenho coragem de perguntar sobre a Bruna.
- Ela mora bem aqui em cima. Oh, Bruna! Oh, Bruna! – Grita minha tia com sua voz rouca de velha.
A seguir aos gritos da minha tia ouço passos na escada e o som do meu coração aos pulos.
De repente, na sala surge Bruna. A mesma Bruna de 20, 25 anos atrás. A mesma menina pela qual me apaixonei. Como era possível? Pensei que seria ali a hora do meu apagão, da minha bala perdida.
- Essa é a Samantha, minha neta, filha da Bruna, não parece com a mãe quando era nova?
- Muito, elas são praticamente a mesma pessoa.
- Oi, tio. – Cumprimenta a menina.
Eu ainda não havia reparado: Junto à Samantha havia uma mulher gorda, cabelos tingidos de loiro, com as raízes brancas expostas. Roupas apertadas. Um jeito vulgar. Olheiras cansadas, papadas sob o queixo. Sorridente, foi logo me cumprimentando.
- Nélson? Eu nem acredito, que milagre é esse, rapaz?
Só pela voz, eu reconheci que aquela mulher era minha Bruna. Não restava quase nada da menina debutante das tais fotografias.
- Passava por aqui, a trabalho, resolvi parar...
Não sabia muito que falar, detestava mentir. Mas não poderia dizer: resolvi passar aqui antes de morrer. A sorte que a minha prima continuava a mesma tagarela de sempre.
 - Acho que você não vem aqui desde os meus 15 anos!
A menina olhou para Bruna como se não acreditasse que um dia a mãe pudesse ter tido 15 anos.
- Aquela foi uma festa inesquecível. Você lembra? – A mulher de cabelos tingidos ri com gosto. Eu me sinto contagiado por toda aquela alegria. Naquele momento, a minha morte iminente não importava mais.
- Claro que eu lembro! Como poderia esquecer? – Todo aquele excesso de peso, a ação do tempo, nada importava mais. Eu agora a via como a menina dos meus sonhos.
- Você se lembra de como você dançou? – Bruna agora ria às gargalhadas.
- Claro que eu lembro, é só do que eu me lembro!
- Até eu lembro, você foi a sensação da festa! – Dona Emília parecia contagiada por toda aquela animação.
A empregada, que acabava de entrar com uma bandeja de quitutes, também parecia conhecer minha fama.
- Ah, então foi esse que eu vi na fita dançando? Ixê, Maria. Por isso que eu achei que conhecia esse homem.
- A fita! Vou lá em casa pegar a fita.
Logo Bruna voltou com a fita. Uma pequena platéia se formou em frente à TV. Eu mal podia esperar para rever o show que me havia feito o destaque da festa. Com o controle remoto em punho, Bruna avançou para parte em que eu dançava. E o que eu vi foi um adolescente desengonçado, completamente tonto, caindo por cima da aniversariante e tropeçando, e novamente caindo, várias vezes, até ser arrancado de perto dela. A seguir, estou de joelho, segurando a barra do vestido e implorando para dançar. A aniversariante desaparece. A valsa é seguida por um rock. De repente, me vejo sozinho no centro de uma roda, formada por quase todos os convidados. Eu danço o novo ritmo como se meu corpo não tivesse ossos. Sou empurrado de um lado para o outro, por todos, como um joão-bobo. Rebolo como um maníaco enfurecido, incentivado por muitas palmas. Um close mostra minhas feições desfiguradas pela bebida, uma boca semi-aberta babando, um sorriso demente, um olhar perdido. Não havia nada mais patético. Sou salvo por minha mãe que entra e me afasta para longe do alcance da câmera.
- Não é hilário? – Minha prima ria sem poder conter as lágrimas.
- Ai, tio, o senhor arrasou. – Samantha diverte-se.
- A gente de vez em quando coloca essa fita, só para rir. – Disse Bruna tirando a fita do vídeo cassete.
- Rir de mim, no caso. - E o médico disse que não haveria dor na minha morte.
- Ah, mas foi hilário, Nélson. Eu já paguei micos piores. Você nem imagina.
- Eu que o diga, uma vez eu fui tirar essa garota...
- Mãe, não conta, olha a Samantha aí!
- Ah, conta, vó!
Eles tinham tantas lembranças alegres. Eu não tinha mais nenhuma. Não me restava mais nada. E talvez não houvesse tempo para tentar encontrar alguma outra recordação feliz, talvez eu não quisesse. Mas será que ainda havia outras no meio daquelas fotos escassas, perdidas na minha memória desbotada?   Levantei-me bruscamente.
- Tenho que ir.
- Ah, fica para jantar. - Pediu minha tia.
- Não posso, tenho pouco tempo. – Talvez minha única verdade daquela noite.
- Olha, mês que vem é o aniversário de 15 anos da Samantha, venha, hein, você está intimado. – E me entregou o convite de debutante de filha. - E não se esqueça, hein, são dois para cá, dois pra lá!
Ao fechar a porta, ainda pude ouvir o som abafado das gargalhadas das mulheres na sala.
Saí, sem destino. Guiava pelas estradas tortuosas em grande velocidade. Pensei em antecipar tudo. Tão pouco tempo, que diferença faria? Mas também pensei no meu fiel Corcel, ele não merecia. Nunca havia me deixado na mão. O único. Porém, era tarde demais, numa curva mais fechada, o meu velho amigo precipitou-se num abismo. Era como se adivinhasse minha dor. No porta-luvas do carro, a última coisa que vi foi o convite de 15 anos e pensei: “Será que teria dado tempo de eu aprender a dançar?...”
Autor: Marco Tozzato

terça-feira, 26 de abril de 2011

60 segundos



- Alô, Rô?
- Quem tá... Clarissa?
- Como você adivinhou?
- Só você me chama assim. E sua voz eu conheço bem. Que surpresa, quanto tempo! Tudo bem contigo?
- Tudo, tudo certinho. Hoje é seu aniversário, né? Então, eu liguei pra...
- Poxa, você lembrou...
- Se eu lembrei? Eu nunca esqueci. Aliás, Rô, é sobre isso que quero te falar. Bom, vou contar tudo de uma vez só, antes que a coragem suma. Eu terminei. Dessa vez é definitivo. Mandei meu ex tomar naquele lugar onde é mão única e não bate sol. Mentira. Não foi bem assim, mas eu mandei ele catar coquinho e disse que não aguentava mais aquela vidinha água com açúcar que a gente levava. Eu sei que você deve estar pensando "e eu com isso?", mas você tem, sim, tudo a ver com isso. Eu nunca te esqueci e eu sei que você tem namorada e que talvez esteja até aproveitando a moda de príncipe William e planejando se casar. Mas eu sei também que sua vida ao lado dela é mais água com açúcar do que a minha e só eu sei do que realmente você gosta. Ah, isso eu sei! Você sabe! Então, eu pensei muito antes de tomar essa decisão, tomei até uns remédios tarja preta pra ver se conseguia relaxar e desencanar. Eu sei que não funcionou muito, mas o que importa mesmo é que eu te amo e hoje eu tenho certeza disso. Quando fecho os olhos eu nos vejo juntos e quando eu sinto sua falta me dá um aperto enorme aqui no peito. Sem falar que meu corpo sente saudades do seu. É coisa de pele, de coração, de alma, você entende?
- Alô? Alô?
- Rô?
- Oi, Clarissa. A ligação sumiu. Você disse alguma coisa?
- ... disse que desejo a você um excelente aniversário e muitas felicidades.
- Ah, brigadão. Valeu então. Se cuida!

sábado, 23 de abril de 2011

Pesadelo 1


Entrei no recinto. Havia várias macas ocupadas por pessoas que pareciam estar doentes. Mas ali não era um hospital, o lugar era imundo e cheirava como um abatedouro, um cheiro forte, ferruginoso, de sangue e carne podre. Em uma das macas pelas quais passei, havia um menino negro deitado, imóvel, que tinha um risco na testa que ia de uma orelha à outra. Impressionado com aquela visão desagradável, resolvi continuar a caminhar pelo local.

Observei que havia também jaulas ocupadas por cachorros. Mas algo estava errado, os cachorros pareciam ter corpo de uma raça, cabeça de outra, patas de uma terceira raça, todas as partes do corpo de cores diferentes. Ao me aproximar mais, percebi que os eles tinham costuras em suas juntas, o pelo ora era liso, ora crespo, e eles espumavam muito pela boca. Perturbados com a minha presença, eles começaram a latir muito alto. Achei melhor não continuar naquela direção.

Voltei na direção das macas. O menino negro virou-se para o lado pelo qual eu me aproximava, porém, a parte de cima de sua cabeça ficou no travesseiro, como se fosse a tampa de um pote, deixando seu cérebro à mostra. O risco em sua testa era na verdade um corte. Então, o menino olhou dentro dos meus olhos, abriu a boca já pálida e sussurrou bem baixinho, sem força nenhuma em sua voz quase inaudível, enquanto apontava para seu cérebro: “– Tá vendo meu cérebro? Eu tô morrendo. A sensação é horrível.”

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Eu disse, ela disse


 Hoje vou postar um texto o qual, enquanto o escrevia e depois, o re-lia, me emocionei bastante. Espero sinceramente que esta prosa poética emane o mesmo que transmitiu para mim. Obrigado e boa leitura. Lohan.           

Eu disse a ela que queria juntar nossas escovas de dente. Ela disse nada, e mostrou-me, mais radiante que a luz do amanhecer, todos os seus dentes. Ela disse ter medo da minha sinceridade. Eu disse ter medo de suas omissões. Eu disse que não queria dizer. Ela disse nada e permitiu que a beijasse. Eu disse para ela se afastar do joio daquele campo. Ela disse que o meu trigo era suspeito. Eu disse te amo. Ela disse não ter certeza. Eu disse que ela ficava linda de branco. Ela disse que preferia preto. Eu disse que nossa relação estava em ebulição. Ela disse para irmos com calma. Eu disse que era virgem. Ela disse não acreditar. Eu disse que a levaria para onde ela quisesse. Ela disse que queria meu abraço para ir até seu universo mais remansoso. Eu disse que pagava o cinema. Ela disse que pagava minha passagem. Eu disse que nossa filha se chamaria Beatriz. Ela disse que seria Maria Eduarda. Eu disse que concordava. Ela disse que Beatriz também era lindo. Eu disse que podia ser um menino. Ela disse que eu estava em outro mundo. Eu disse ainda bem. Ela disse ser realista. Eu disse que adentrar no “ismo” do real tornava a vida mais chata. Ela disse que a primeira vez foi boa. Eu disse que a segunda seria ainda melhor. Eu disse que ia fotografá-la. Ela disse que não era fotogênica. Ela disse que sonhar não pagava a prestação da geladeira. Eu disse que ela estava enganada, pois o fiz em sonho. Ela disse que estava grávida. Eu disse alguma coisa que não lembro. Ela disse que a parede da casa tinha que ser branca, como estava. Eu disse que devia ser azul, como o céu daquela manhã, repleto de horizontes. Ela disse que o café não podia ser doce. Eu disse que detestava adoçante. Ela disse que queria comer brócolis cru. Eu disse que era desejo de grávida. Ela disse que fazia parte da dieta. Eu disse que ia ao futebol com os amigos. Ela disse que não faria o almoço. Eu disse que ficaria em casa. Ela disse que mesmo assim, não faria o almoço. Eu disse que faríamos amor. Ela disse que faríamos as pazes. Eu disse, com todo brilho no olhar, que tinha sido promovido no emprego. Ela disse, com todo embaço no olhar, que era um menino. Eu disse que ele seria Flamengo. Ela disse que seria Fluminense. Eu disse que ele era a cara dela. Ela disse que bebê não tinha cara. Eu disse que se chamaria Emanuel. Ela disse “que lindo”. Ela disse que precisava colocá-lo numa creche. Eu disse que não tinha coragem. Ela abandonou o emprego. Eu disse obrigado. Ela disse nada, e não de nada. Eu disse que ele precisava ler mais gibis. Ela disse que ele podia ler Platão. Eu disse que ele queria ser Vasco. Ela disse “ele não tem querer”. Eu disse que estava ficando velho. Ela disse que era uma indireta para ela. Eu disse que o tempo passava para os dois. Ela disse que eu tinha um caso com uma mulher mais jovem. Eu disse que ela estava louca. Ela disse que leu o bilhete do bolso da minha calça. Eu disse que bilhetes não significavam nada para um poeta renomado. Ela disse que minha poesia era uma merda. Eu disse que ela se deixou conquistar por merdas. Ela disse pra eu dormir no sofá. Eu disse que ia para a rua beber. Ela disse para eu não voltar. Eu disse que queria a guarda do meu filho. Ela disse que o filho era dela. Eu disse que tinha um emprego melhor. Ela disse que mãe é mãe. Eu disse que ia visitá-lo aos finais de semana. Ela disse que encontrara um novo amor. Eu disse que ia pegar minha escova de dente. Ela disse que já tinha jogado no lixo. Eu disse que ela foi precipitada. Ela disse que agiu tarde demais. Eu disse que não queria dizer. Ela disse tudo o que eu não queria ouvir. Eu disse para ela se afastar do mal que ocupava a vida dela. Ela disse que o bem da minha vida era a boemia. Eu disse que ela realmente ficava melhor de preto. Ela disse que àquela altura, o claro lhe caía melhor. Eu disse que pagava o cinema. Ela disse pra eu guardar meu dinheiro para a pensão. Eu disse que ainda a amava. Ela disse que estava esperando uma filha. Eu disse o silêncio mais profundo. Ela disse que ia me fotografar ao lado de Beatriz no dia de seu primeiro ano. Eu disse que meu semblante estava péssimo para foto. Ela disse que Beatriz era flamenguista. Eu disse que ia me matar. Ela disse que se matar exigia muito da cabeça, e menos do coração. Eu disse que ia atirar na cabeça. Ela disse que precisava do meu coração. Eu disse para trocarmos novamente. Ela disse que voltaria a ser o meu real. Eu disse que voltaria a ser sua utopia. Ela disse que um começo feliz merecia um final feliz. Eu disse que o final não existe quando se tem amor para todo o sempre. Ela disse que pintara a parede da casa de azul. Eu disse que branca realmente era a melhor cor de parede. Ela disse que só bebia café melado agora. Eu disse que tinha aderido à sua amargura. Ela disse que comprara uma escova de dente nova para mim. Eu disse que precisava usá-la para ela passar a ser minha. Ela disse que o banheiro ficava no mesmo lugar. Eu disse, espumando pasta de dente: te amo. Ela disse que agora tinha certeza. Eu disse que as certezas eram ilusões. Ela disse que queria viver iludida. Eu disse que ia fotografá-la. Ela disse que as rugas sexagenárias não seria uma boa lembrança. Eu disse que ia caminhar com meu neto no calçadão. Ela disse para eu levar o casaco, pois podia esfriar. Eu disse que esqueci. Ela disse que não tomei meu remédio. Eu disse para ela cessar o sermão. Ela disse que eu era teimoso. Eu disse que a vida é que teimava em aproximar-me da morte. Ela disse que morreria antes de mim. Eu disse que isso era inconcebível. Ela disse que morreríamos juntos. Eu disse que ninguém vive sem um coração, ou sem uma cabeça. Ela disse que sentiu uma fisgada no peito esquerdo. Eu disse que estava sentindo uma forte dor de cabeça. Ela disse para eu lhe dar a mão. Eu disse que a levaria onde ela quisesse ir. Ela disse que queria meu abraço para morrer em mim. Eu disse que queria morrer nela.
            Nossas escovas de dente já não mais seriam usadas.



quinta-feira, 21 de abril de 2011

O vício

 
 Nota: Após meses sem escrever, repentinamente me baixou o vírus da inspiração irrefreada. Por isso, resolvi postar mais um texto para compensar a falta de outros. Espero que curtam. O texto a seguir é baseado em fato real. Eis o link, fonte de inspiration:


http://misterfreitas.wordpress.com/2011/04/20/justica-manda-empresa-liberar-funcionaria-para-se-masturbar-2/


  Cândida estava irrequieta na cadeira. Seus pensamentos se encontravam em conexão direta com seu sistema nervoso, que por sua vez emitia uma mensagem direta para sua mão que parecia sofrer de uma síndrome daquelas que se tem na perna e que ela não sabia o nome... sem querer, seus dedos tocavam direto no meio das suas coxas, e por mais que ela os retirasse, eles insistiam em voltar para o mesmo local feito um tique nervoso.

  As pessoas sentadas nas cadeiras do corredor no lado oposto, começaram a reparar nos seus suspiros, nos seus movimentos estranhos, nas suas coxas esprimidas de lado e naqueles dedos que pareciam ter vida independente do corpo pálido. De repente, os cochichos deflagaram para um incontrolável manifesto de protesto enquanto algumas senhoras se levantavam e saíam de seus assentos e outras chamavam pelos guardas. O advogado de Cândida tentava trazê-la de volta a lucidez agarrando seu braço num gesto desesperado e com olhos arregalados.

  Os homens não sabiam ao certo como reagir. Seus olhares denunciavam um prazer voyeurista; mal piscavam e não queriam perder nenhum milésimo daquela que parecia ser a cena mais explícita de masturbação em público e justamente no local mais impróprio de todos: o fórum.

  Cândida manteve as pálpebras cerradas e para além dos seus batimentos cardíacos sucumbiu ao som das vozes alteradas e misturadas, e num acesso súbito de prazer, esticou as pernas, contorceu o quadril, chegou a pular da cadeira, enquanto sentia escorrer pelas pernas o caldo quente de seu clitóris em erupção. Enfim, seus gritos conseguiram causar o efeito oposto nos seus espectadores: o silêncio estupefato de quem não consegue acreditar na cena que acabara de presenciar.

  Sua doença tinha um nome: compulsão orgástica. E seu motivo para esta audiência: pedir ao juíz sua liberação para a prática do ato libidinoso a cada duas horas, no máximo, no seu ambiente de trabalho. Queriam demiti-la por justa causa após vários acessos de prazer frenético no local. Fora obrigada a se submeter a vários exames que comprovassem seu "mal" estar. A defesa alegava não existir no país clínicas especializadas no tratamento de tal vício, por isso, não poderiam ser consideradas ilícitas ou libidinosas suas atitudes incontroladas de busca pelo orgasmo, quaisquer que fossem os locais. Ela não estava em condições de responder por si mesma nos momentos "da falta da droga", nem tampouco havia medicação que amenizasse tal impulso, além das sessões de terapia recomendada pelo médico que corroborou com seu carimbo, o laudo de sua doença.

  Três orgasmos mais tarde, um passeio pela delegacia e uma sentença à seu favor foram suficientes para que seu caso já se encontrasse nos noticiários locais, na internet, nas bocas de todo o povo de Castidade... Algumas universidades federais, clínicas, psiquiatras, ginecologistas, pais de santos, pastores, terapeutas homeopatas, acupunturistas e sexólogos faziam parte de uma centena de pessoas e entidades que queria estudar seu caso com exclusividade: cidadãos comuns lhe propunham cura através de orações, ervas, regressão, mediunidade, exorcismo e prática de sexo grupal. Sindicatos de prostitutas, partidos políticos, ongs de movimentos gays pediam sua participação efetiva para diminuição do preconceito contra as classes oprimidas. Mas Cândida não queria saber de nada disso. A única coisa que chamou sua atenção foram os brinquedinhos ofertados por algumas editoras de publicações voltadas para o público masculino, por uma confecção de lingerie que fabricava fantasias eróticas e por lojas especializadas em produtos destinados à prática do sexo. Todos queriam utilizá-la como garota propaganda do prazer.

  Cansada de ter seu prazer exposto desta maneira, Cândida resolveu então sucumbir ao estrelato: decidiu ser a nova Emmanuelle das telinhas. Contracenou com Rita Landau, Gretchina, Alexandre Froda. Foi convidada para algumas participações especiais em novelas das oito com Débora Molhada e aceitou participar do confinamento hit das celebridades: A Chácara.

  Sua falta de controle rendeu votações incríveis para sua saída ou continuação na casa. Não havia hora, lugar ou contexto para suas manipulações orgásticas: na piscina, no jardim, no sofá, debaixo do chuveiro. Tornou-se a musa dos tímidos e solitários de plantão. Tornou-se a deusa dos onanistas e dos voyeristas. Tornou-se o demônio dos conservadores, das beatas, dos canhões. Tornou-se alvo da inveja das bundudas siliconizadas de plantão.Tornou-se um rio de dinheiro para a mídia.

   E a voz do povo, é a voz de Deus: Cândida ganhou dois milhões de reais e tornou-se uma lenda viva em prol do prazer. Virou aplicativo no Bodybook, ganhou comunidades noYogurt e clubes de fãs por todo o Rasbil. Por fim, tornou-se candidata à vereadora em sua cidade natal: iria lutar para que fossem construídas escolas especializadas em massagem, toque oriental, terapia de conhecimento interior e pesquisas que promovessem a descoberta do ponto G.

   Um dia, após um orgasmo múltiplo e suado, Cândida desfaleceu, teve um ataque cardíaco e morreu. Há quem diga ter se curado do Mal de Parkinson por causa dela. Casos de milagres ocorridos após promessas feitas em seu túmulo se multiplicaram pelo estado. Tornou-se mártir das vítimas de abuso sexual. Agora o seu caso estava sendo estudado pelo Vaticano. Seria o primeiro caso de tarada elevada ao posto de santa, na história da humanidade.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Ressurreição em Boa viagem.



  Naldo não queria companhia. Por isso mesmo, se mudara para a roça. O cheiro do mato, a conversa das árvores com a água do rio, o humor esquizofrênico das montanhas, se tornaram sua companhia mais próxima, mais íntima. Adorava conversar com a natureza, saboreando seu caneco de café coado à moda antiga. Adorava sentar-se na varandinha de terra batida encolhido em seu casaco de pêlo de carneiro enquanto observava por horas, o constante movimento das nuvens e do clima.
  Ora chovia, ora fazia sol. Ora esquentava, ora esfriava, o que deixava o local úmido o tempo todo. E assim passavam os dias, entre o entrave das burocracias que o obrigavam a ir à cidade e a contemplação solitária de um modo de vida que poucos compreendiam.
  Seu passado era urbano, cosmopolita, frenético. Nos tempos em que morava em São Paulo, sua saúde física e mental foi sofrendo as consequências de quem vive a tortura dos engarrafamentos intermináveis, da poluição, do barulho, dos bueiros entupidos, das agressões verbais de gente que como ele se tornou escrava de um sistema corrompido onde o que vale é fazer dinheiro em milésimos de segundos; em que cada segundo equivale a uma hora; onde parece que um dia é formado por quarenta e oito horas.
  Até que um dia cansou. Se olhou no retrovisor do carro e percebeu que aquela busca incessante por dinheiro  deveria servir a algum propósito. Não tinha mulher ou filhos ou pais idosos que dependessem de sua atenção. Sua vida social se limitava as visitas diárias aos clientes a quem vendia planos de assistência funerária. Não possuía nenhum tipo de hobby, vício ou objetivo. Nem sequer gostava do seu trabalho. Estava simplesmente respirando...
   Mas isso também já era passado. Agora havia chegado o momento, estava pronto. Cinco anos de solidão e agora não havia mais como retroceder. Seu destino estava traçado.
  Só reparou que estava pronto quando seu coração palpitou de emoção ao compreender que
era capaz de concretizar algo que para os códigos éticos cristãos seria uma insanidade mental. Estava pronto para deixar de ser um solitário. Estava pronto para adquirir uma companhia que jamais argumentaria qualquer coisa com ele. Alguém cujo silêncio absoluto e total frieza se encontravam num corpo inerte, morto.  Um corpo vazio de vida, o qual ele banharia, beijaria, abraçaria quando assim o quisesse. Um corpo que ele ignoraria, esconderia, sem obter qualquer  resposta negativa ou positiva. Um corpo que ele teria que buscar na calada da noite misteriosa e cúmplice, no pequeno cemitério de Boa Viagem.

  Seu itinerário se daria sem atropelos. O cemitério local padecia da falta de habitantes. Os moradores já não enterravam mais ninguém naquele lugar. Havia se tornado um condomínio de luxo para pouco mais de cento e vinte privilegiados natais. A culpa era do terreno úmido. Mas isso não vinha ao caso agora.
  Naldo já sabia a quem resgatar da claustrofobia. Havia estudado seu túmulo, observado sua foto, seus traços, seu íntimo e se apaixonou.
  Em poucas horas teria em seus braços aquele esqueleto. Em poucos meses teria de volta esculpida em cera, em massa,  em carne  retirada de um tanque de formol gasoso, a sua Maria. Uma virgem, assim como a mãe de Jesus. E ela ressuscitaria esta noite, Sexta-feira Santa.
  Mas estes pormenores ainda teriam que ser escritos. Por ora, saboreava mais um caneco de café, enquanto se perguntava o porquê das pessoas se interessarem pelos vivos, ou melhor, por aqueles que eles consideravam vivos. Vivo na verdade, é aquele que está morto, pois só ele vive na contemplação, na paz, na doação completa à mãe natureza. E ele parecia o único a saber disso, ou pelo menos, um dos únicos a ter a sanidade de compreender tal fato. Este parecia ser o recado que Jesus deixou quando morreu e ressuscitou. E logo, logo, em poucas horas, ele daria a oportunidade de um vivo considerado morto ter a atenção que qualquer ser humano carente de ar deveria ter. Seu amor e dedicação seriam irrestritos; sua vida voltaria a ter sentido. Não seria mais um vegetal.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Ela se foi


Deitado sobre a relva ainda orvalhada
Observo o sol nascer alaranjado
Então fecho os olhos e fico me recordando
Dos momentos que vivi ao lado de minha amada

Os raios do sol ao tocarem meu corpo
Assemelham-se aos afagos de tão leves mãos
Foi bom enquanto a tive em meus braços
São lembranças boas, mas que me causam sofrimento

Sofro ao encarar a dura realidade
Levanto-me e começo a caminhar sem rumo
Sinto um forte aperto no meu coração

Todos os meus esforços em nome desse amor foram em vão
Não consigo esquecê-la nem enquanto durmo
Pois durmo o amargo sono da infelicidade

sábado, 16 de abril de 2011

Chocolate meio amargo

Olá, autores s/a,

Este é meu primeiro texto no blog. Fui convidado pelo autor Lohan, e terei muito prazer em compartilhar com vocês alguns textos meus. Obrigado, Marco.


Sol de lascar das quatro. Asfalto fumegante, imagens retorcidas e nenhuma clemência. Pelo corpo o suor empapava, nas mãos, uma caixa cheia de coisas semi-derretidas. A impaciência no peito, o ódio na garganta. O braço débil faz sinal para um ônibus. Ele implora. O motorista concede. Dentro do veículo ele faz seu discurso humilde contendo a revolta. Sempre teve muita lábia, mas a mercadoria não ajudava. Escolha errada para aquele sol repentino. Afinal chovera a semana toda. Finaliza sua fala com o clássico: “eu poderia estar roubando, matando, mas estou aqui vendendo”. Ninguém se comove. Uma mulher gorda vira o rosto para janela e finge admirar a paisagem. Um casal conversa indiferente. Mas foi o ato do office-boy de colocar os fones do seu mp4 que deflagrou tudo. Sacou a pistola que trazia escondida no cós da calça e acertou um por um bem no meio da testa. Agradeceu o motorista, desceu do ônibus, atirou fora a caixa de chocolates. Era verão mesmo, melhor seguir o conselho do seu irmão que sempre dissera. “Se eu tivesse uma mira como a sua não ia ficar por aí vendendo porcarias, ia entrar para o crime.” O ex-vendedor caminhou a esmo, peito aliviado, pensando se subia o morro ou se entrava para política.

Autor: Marco Tozzato.



de chuva, suor e cerveja


meu suor escorrendo na tua janela. contornando a fragilidade dos retratos em branco e preto. diluindo meus dedos, horas, chegadas e partidas. soluços e medos.  fiquemos assim, na loucura tátil do quarto, gastando a vida à procura de nossos versos e avessos. buscando nas paredes infindas o finito de nossas vozes memória  gostos e amanhãs. é então o lodo que vai nos redimir? quero a lama contigo, quero ainda o tédio, a fome, o gosto podre do efêmero. e também o leve, ácido, contrátil, atraente, amargo. quero o rasgo. cabides, pinturas rotas, rabiscos, café frio, o mofo. o fundo, o resto. nosso calor ébrio, sede insana, noites insones.  quero o fogo e o frio, a vida e morte que se esconde nas frestas de teus olhos escuros. quero piadas baratas histórias e vícios. e quero mesmo o que seja pouco. os bares sórdidos e calçadas. compulsão, cigarros, cerveja [barata ou não]. longos goles de mania e depressão. quero o pulsante que a gente inventou pra se distrair da falta de sorte. quero só o que tua mão criou pra mim e tua boca pariu feito beijo. quero o áspero. a tinta fresca. o que se envelhece. se perde, se roça, filme antigo, música estranha. tua dança. teu começo e fim em si mesmo. a chuva percorrendo os poros. hálitos, certidão de má conduta, nosso sêmen, vida vagabunda. rotina. horários e contas. a tua e a minha intolerância à frustração. nosso suor sem etiquetas embaçando o quarto.

“A gente se olha
Se beija se molha
De chuva, suor e cerveja”
[Caetano Veloso]