terça-feira, 29 de setembro de 2009

Partir

Leva de mim essa dor.
Leva de mim esse peso.
Lava o meu rosto.
Tira os espinhos.
Assopra...

Me dê asas.
Me dê nadadeiras.
Me dê um impulso.
Para eu pular esse muro.
Para eu fugir daqui.





E não me deixe levar nada comigo.
Nenhuma sombra dessa escuridão.
Nenhum medo desse vazio.
Nenhuma escara desse corte.
Pois tudo que eu quero agora é sorte.

Sorte para eu que parto.
Sorte para quem fica e se parte.
Sorte para quem reparte a loucura.
Eu quero a cura.
Eu quero a arte.
Preciso de sanidade...

Cuida de mim e dos meus pedacinhos.
Junte- os, guarde-os...
Um dia eu volto para casa.
Com os pulmões cheios de sol.
E a alma lavada de mar.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O homem que queria ser outro - Parte seis - A mensagem






Ana Lucia despediu-se do marido, que saía para o seu árduo trabalho. Seus dias geralmente eram intranqüilos em relação a segurança dele. Não obstante a grande experiência que ele já possuía na área – dez anos de ofício – ela sentia seu corpo estremecer, toda manhã, após o beijo de despedida. Beijava-o como se fosse a última vez. Sozinha, ela ia diretamente até o bar que havia na sua sala, e enchia um copo de uísque, virando-o de uma só vez goela abaixo. Aliviava-se. Procurava o que fazer. Naquela manhã ela foi acessar a Internet. Pensara muito nos amigos que já não via a algum tempo. Estudar na ausência deles já não era prazeroso.
Acessou o seu orkut, e foi direto na home de Ariano. Deixou-lhe um recado, perguntando como estava, o porque de não ter escrito no jornal no dia anterior, e quando voltaria às aulas. Deu uma espiada nas comunidades do garoto, admirando o quão culto ele era. A maior parte das comunidades a que era adepto se tratava de escritores, renomados ou não, filósofos, pinturas, mpb... “Preciso ir acostumando meu filho com uma cultura dessas”, pensou ela, em devaneio, tendo Ariano como protagonista dos seus pensamentos, suas ilusões.
O próximo perfil acessado foi o de Euclides. Em sua página de recados, ela deixa um recado semelhante ao que deixou a Ariano. Exatamente como fez no perfil de Ariano, ela, curiosamente, bisbilhota as comunidades de Euclides.
E nota algo estranho...
Percebe que já tinha visto aquelas comunidades, recentemente... Há poucos minutos...
Ela acessa todas as comunidades de Euclides. Em seguida, retorna as comunidades de Ariano...
-Não pode ser... As mesmas comunidades. Todas, o mesmo número, tudo idêntico!
Ana Lucia chega a soltar um sorriso surpreso. Uma surpresa que se dividia entre o orgulho e a estranheza. “Ninguém pode ser tão igual assim”, pensou ela. “Esses meninos são loucos”.
Primeiramente, imaginou ser uma gozação. “Eles combinaram isso, esses dois...” Mas aos poucos, outros pensamentos foram tomando conta da sua mente. Sentiu que poderia haver uma competição surda ali. Mas não sabia de onde partia. Não tinha idéia de quem copiara quem. A quem desejavam impressionar. Um ou outro. Ou ambos. Já não sabia mais de nada. Estava confusa. Fechou o orkut, levantou-se daquela cadeira de rodinhas e retornou para o bar. Mais um copo de uísque. Brindou consigo mesma. Um brinde ao mundo real.
No jornal, Haroldo pediu que todos se dispersassem, e fossem administrar suas funções. Alguns ainda foram prestar condolências a Euclides, que permaneceu sentado, dissimulando um grande abatimento.
-Caiu da escada... Como pode isso... – Diz ele, a Haroldo.
-Não acha melhor ir para casa, Euclides? Eu posso pedir a alguém que te leve.
-Não, não é necessário. Eu só vou dar mais um tempo aqui, refrescar a cabeça, e irei.
-Mas não deixe de ligar para sua mãe. Ela parecia preocupada com você.
Ao ouvir aquelas palavras, Euclides quase abre um sorriso de satisfação em meio a toda tristeza que representava. “Preocupada comigo...”
-Deixa eu retomar meu trabalho. Meu dever com você foi cumprido. Seja forte, apóie seus pais.
-Obrigado, Haroldo. Fazer o que você fez, não é pra qualquer um.
-Por nada. Não sou médico não, mas já dei muita notícia de morte. Me sinto um papa defunto às vezes. – Brincou, quebrando um pouco o clima lutuoso. – Qualquer coisa, chame por alguém.
-Fique tranqüilo, me sinto bem.
Haroldo se afasta de Euclides. Neste momento, quem se aproxima dele é Lia Neide.
-Euclides, acabei de saber lá na minha sala. Sinto muito. – Lamenta ela.
-Bem que hoje ao acordar eu me senti tão... Estranho, sabe? A morte é muito viva entre nós. Caiu da escada... Eu não posso acreditar...
-Nossa... Que coisa horrível, não gosto nem de pensar. E logo dessa forma você ficou sabendo da notícia, aqui em seu ambiente de trabalho. Foi muito desagradável. O Haroldo podia te poupar dessa situação.
-Que nada, eu saberia mais cedo ou mais tarde... Ele fez bem. Pelo menos agora não levarei o baque lá em casa. Já vou chegar preparado.
-Você já entrou em contato com seus familiares?
-Não, não... Nem tem como agora, meu celular está descarregado.
-Não seja por isso. Venha até a minha sala, use o telefone de lá.
Lia lhe estendeu a mão, prestativa. Quando ficava diante do sofrimento de quaisquer pessoas, buscava ajudar de todas as maneiras possíveis. Sua generosidade era maior do que sua angústia. Era capaz de doar todas as suas forças pelo bem alheio, esquecendo-se de que, antes de viver a vida dos outros, era preciso viver a sua.
Euclides a admirou por alguns segundos, e segurou em sua mão. Ele se levanta da cadeira, e penetra seu olhar no semblante de Lia, que por sua vez, esquiva os olhos.
-Vem... Ta olhando o que? – Indaga ela, com a certeza de que ele estava a admirando.
-Por que não olha para mim para saber?
Ela solta sua mão.
-Vem, seus pais precisam de notícias suas.
Lia avança até a sua sala, enquanto Euclides a segue. Julia o observa entrar na sala de Lia.
-O que ele foi fazer lá?... – Pergunta-se ela.
Lia fecha a porta de sua sala.
-Pronto. Pode fazer sua ligação.
-Eu agradeço.
Euclides se senta na cadeira da mesa de Lia, e começa a discar alguns números. Ele digita números desconhecidos, e começa a fingir um diálogo com a mãe.
-Oi mãe. Já sei de tudo... – Demonstrando muita tristeza – Eu to bem, ok? Não se preocupa comigo não... Daqui a pouco estarei em casa.
Ele dá uma pausa, e prossegue:
-O enterro será hoje mais tarde? Nossa... Meu Deus, mãe. Desculpa não te atender, mas meu celular estava descarregado, eu dormi na casa de um amigo e... Ah, depois conversamos melhor.
Ele dá uma nova pausa.
-Está bem. E o papai, como está?
-...
-Menos mal. Fique bem, eu já vou chegar.
-...
-Também te amo.
Euclides desliga, levando as mãos ao rosto, a um suspiro carregado.
-Sua avó... Ela tinha que idade?
-Oitenta e dois anos. Velhinha, né? Mas era resistente que só vendo... A ficha ainda não caiu. Tanto que falávamos a ela: cuidado com a escada!
-Tadinha... Que fatalidade. A gente que sonha sempre em morrer dormindo, não é? Minha mãe que vive dizendo isso.
-Eu não sonho em morrer assim. Eu quero sentir a morte tomando meu corpo. Quero estar alerta, desperto, e não dormindo. Tenho muita curiosidade em saber como ela invade nosso corpo, nossa alma. Morrer dormindo... Nada mais é do que o chá da madrugada entre as duas amigas mortes. Dormir também é uma espécie de morte, não concorda?
-É... Nossa, como você viajou agora... – Sorri , pasma – Você pretende ir para casa sozinho? Tem condições?
-Tenho. Eu pego um táxi, dou um jeito. Agradeço sua preocupação. Você é uma menina muito meiga, sabia?
Lia inclina a cabeça, envaidecida; ela remexe em alguns papéis sobre sua mesa, enquanto é observada meticulosamente por Euclides.
-Obrigada...
-Eu te vi lá embaixo. Presenciei tudo o que aconteceu, Lia.
Ela leva um susto, olhando instantaneamente para Euclides.
-Viu?!
-Estava chegando. Aquele que é o tal do...
-Adalberto. Ai meu Deus, era só o que faltava. Você viu tudo, tudo mesmo?
-O beijo... Foi demorado para quem não quer nada mais.
-Ele me agarrou a força, se viu tudo, sabe disso! – Esbravejou ela.
-Ei, calma... Eu sei disso. Só acho que... Você gostou. Deu confiança a ele.
-Nada disso. Ele fica me importunando, dia e noite. Não sei mais o que fazer...
Eles fazem um lacônico silencio. Euclides a olha com um riso cínico nos lábios.
-O que foi, ta com essa cara porque? – Indaga ela.
-Você ainda o ama. Está na cara, Lia Neide.
-Ah! – Ela ri, confusa – Amo o Adalberto? Você está achando coisa demais.
-Eu não estou achando. Tenho certeza.
-Euclides, a sua avó morreu, e você querendo discutir um assunto desses agora!
-Estou querendo te ajudar. Vejo que está confusa. Mas no fundo, sabe quem ama. É o ex.
Ela ameaça rebatê-lo novamente, mas não chega a completar uma palavra. Hesita, e só depois diz:
-Ai, pode ser que sim...
-Sabia.
-Por que tem tanto interesse em saber isso?
-Porque eu gosto de você. Como amiga, claro.
-Sei...
-Se ele te maltratou de alguma forma, dê o fora desse cara.
-Mas está muito recente ainda e... Sei lá, ele me balança muito, essa é a verdade. Nossa, em questão de dois minutos você me fez contar coisas que não conto nem às minhas amigas mais íntimas.
-Se me conta, é porque confia em mim.
-É, pode ser... Você inspira confiança mesmo.
-E transpiro também! – Ele sorri.
-Você jura que não isso para ninguém?
-Lógico que não. Por que eu contaria? E para quem?
-É, bobagem minha... Ah, ontem recebi seu recado. Adorei seu texto.
-Sério? – Ele abre um largo sorriso – Ganhei um dia que estava perdido.
-Fala sério. Sua avó morreu, garoto.
-E só por causa disso eu tenho que ficar chorando pelos cantos o resto do dia? Eu não sou muito de chorar. As vezes eu quero muito chorar, mas não sei... Me sinto seco de lágrimas.
-Você é doido. Quanto a poesia, você acha mesmo que pode ser publicada? Por mim, tudo bem!
-Claro que acho. Aliás... Eu quero te falar mais uma coisa a respeito dessa poesia. É algo meio desagradável, mas... Você tem o direito de saber, Lia.
Lia se senta numa das extremidades da mesa.
-Vai, conta.
-O Ariano... Ele é apaixonado por você, e você sabe disso, não sabe?
-Ah, sim... O Ariano... Eu sei. – Ela consente, lamuriosa.
-Ele me pediu a autoria da poesia emprestada. Para enviá-la a você.
-Como? Não entendi...
-Ele leu minha poesia, conforme te disse pela mensagem. E gostou tanto que pensou em enviá-la para você como se ele tivesse escrito. Para impressionar você.
-Não pode ser, o Ariano? Ele não precisava tomar essa atitude! – Perplexa.
-Mas tomou. Eu insisti, tentei enrolar ele, dizendo que era melhor não, enfim... Mas ele ameaçou até mesmo terminar nossa amizade por conta disso. Eu tive que conceder. Depois, me arrependi, pois sei que você conhece a poesia, e iria desmascará-lo facilmente. Mas como eu gosto dele, e também de você, não quero criar uma situação chata entre ambos. Agora você já sabe, e queria te pedir uma coisa.
-O que?...
-Não conte nada a ele. Finja que não sabe de absolutamente nada. Por que se ele suspeitar que te contei... Ele nunca mais olha na minha cara.
-Mas ele está errado!
-Eu sei, mas faça isso por mim. Eu te peço. Finja que gostou. Além do mais, ele não anda muito bem da cabeça depois daquele acidente... Só ia fazer piorar se ele sofresse esse impacto.
Lia abaixa a cabeça, pensativa, embasbacada.
-Não esperava isso do Ariano, não mesmo... Ele escreve tão bem! Nossa... Eu odeio mentiras e omissões. Mas vou quebrar esse galho pela amizade de vocês. Não quero causar atrito entre os dois.
-Obrigado, Lia. Você é um anjo, de verdade.
Euclides lança mais um olhar penetrante em Lia, que desvia o olhar, como era de costume.
-Euclides... Sua avó morreu, você precisa ir para casa... – Recorda a jovem.
-É, você está certa. Já fiquei tempo demais aqui... Mas antes, você podia pegar um cafezinho pra gente? Minha cabeça ainda está um pouco atordoada, um café é bom pra despertar. Faz esse favor?
-Claro!
Mal ele termina de falar, ela já se levanta e se dirige a mesa onde se encontrava a cafeteira, no outro extremo da sala. De costas para Euclides, Lia desligava a cafeteira para encher os copinhos de plástico com café.
Euclides olha para a mesa de Lia. Ali se encontravam alguns utensílios pessoais de Lia, como sua bolsa, agenda, uma cartela com comprimidos relaxantes, seu celular, além dos papéis e do computador...
Lia termina de encher cuidadosamente os copinhos com o café morno e se vira para Euclides, indo servi-lo.
-Eis o café. Beba, vai se sentir melhor. Mas não está quente.
-Não tem problema...
Euclides vira rapidamente o café.
-Eu ficaria mais tempo com você, enrolando... Minha vontade é ficar aqui até amanhã... Enfrentar essas coisas de funeral, luto, isso é péssimo.
-Eu entendo. Passei por isso recentemente... Lembro todo santo dia. Mas precisa ser encarado, não é mesmo? – Ela beberica seu café.
-É. Obrigado mais uma vez, pela força, pela paciência, e pelo café, lógico.
Eles sorriem.
-Agora eu vou indo.
-Te acompanho.
-Não precisa.
-Precisa sim! – Ela insiste.
Eles saem da sala. Lia acompanha Euclides até a saída do jornal.
-Vai com Deus. Força, viu?
-Obrigado. Te devo essa, Lia.
-Não deve nada.
Ele beija Lia Neide no rosto, que maquinalmente dá um passo atrás. Ambos sem graça, se despedem. Euclides deixa a redação.
Desce tranqüilamente de elevador, despede-se do porteiro e, descontraído, pede um táxi na esquina mais próxima.
-Toca pra Copacabana, ele ordena, já no táxi.
-É pra já, moço.
Sentado no banco de trás do veículo, Euclides dá uma gargalhada sinistra, chamando a atenção do taxista, que o olha com estranheza pelo retrovisor. Euclides mete a mão no bolso da calça e puxa um celular de capa rosa...
-Eu sou um gênio.
O taxista balança a cabeça negativamente enquanto dirige.
-Pois bem, pois bem... Agora é hora de pôr o plano em prática. Um plano de última hora... Vamos ver se dará certo. – Ele sussurra para si, enquanto manuseia o celular de Lia Neide.
Ele acessa a lista de contatos de Lia. Lá, encontra de cara o nome e o número de quem precisava.
-Adalberto, hehe. – Ele ri.
Euclides opta por enviar uma mensagem de texto a Adalberto, que dizia assim:
“Oi, querido... Queria me desculpar, por hj... Tenho que confssar, ñ tem jeito: sou louca por vc ainda. Aquele bj foi maravilhoso... E pra me desculpar, por tudo, e tbm pra simbolizar nossa reconciliação, quero te fzer um convite... Irrecusável. Me encontre amanhã, às cinco hs. da madrugada, na praia do Leblon. Ñ se assuste com o horário, nem com o local... Será uma surpresa inesquecível, a realização de um sonho que smpre tive. Não falte, e ñ me faça perguntas. Bjs, louca por vc.”
Euclides envia a mensagem.
“Mensagem enviada”.
Cinco minutos depois, o celular começa a tocar. Era Adalberto. Euclides não atende. Adalberto, insatisfeito, envia uma mensagem.
-“Amor da minha vida, eu sbia que ainda me desejava. Na praia? Rsrs Q fogo é esse de repente? Mas vou respeitar, não farei perguntas. Será a noite mais feliz das nossas vidas. Bjs, ansioso, te amo”.
Euclides sorri, e diz:
-Perfeito otário. Será a noite mais feliz das nossas vidas... Pelo menos a minha, será.
No jornal, meia hora depois, Lia procura pelo seu celular.
-Tenho certeza que o deixei aqui, não é possível ele sumir desse jeito... – Dizia ela, desesperada, revirando tudo na mesa.
Neste momento, Julia entra em sua sala.
-Lia, eu queria te pedir um favor...
Lia mal dá atenção a Julia.
-O que houve?
-Meu celular! Eu o perdi, já procurei nas outras salas que fui, e nada de achar.
-Como você perde um celular assim, menina? Já olhou direito na bolsa?
-Já, claro. Revirei tudo.
-Liga para o número do celular. Fará barulho, você irá encontrá-lo.
-Acha que já não fiz isso? Chama, chama, e nada.
-Você não o esqueceu em algum local público?
-Eu tenho certeza que o trouxe para cá, Julia!
Julia coça a cabeça, pensativa.
-Quem entrou na sua sala hoje, Lia? – Pergunta, capciosamente.
-Como??
-Quem entrou aqui hoje?
Lia cessa a procura, respira fundo e responde:
-Só o Euclides... É, só ele mesmo.
Julia bate com as palmas das mãos nas pernas.
-Pronto!
-Pronto o que? Você acha que...
-Claro, Lia! Você foi roubada!
-Roubada, ficou maluca? Eu conversei pouco com ele, o tempo todo! Ele, ele estava mal até, coitado...
-O que ele veio fazer em sua sala num momento daqueles?
-Ele veio telefonar pra mãe dele!
-Ele não tem celular?
-Tem, mas estava descarregado, ele disse... Ah, Julia, que suspeita idiota é essa agora?
-Suspeita idiota? É assim que fala comigo?
-Ai, me desculpa, é que to nervosa... E você ainda fica dizendo coisas sem fundamento.
-Pois então encontre seu celular sozinha. Já vi que meu auxílio será idiota e desnecessário.
Julia já ia saindo quando se detém, e diz:
-Outra coisa: não confie de olhos fechados nas pessoas. Quando se acalmar, venha até minha sala.
E bate a porta.
Já eram tres da tarde. Ariano ainda não tinha se levantado. Dormia em sono profundo... Arlete e Walter estavam preocupados com o filho, e telefonaram para o médico. O médico pediu que verificassem se Ariano havia ingerido a quantidade correta do medicamento.
Arlete conferiu a cartela de comprimidos, e, nervosa, não conseguiu enxergar o obvio. Somente Walter, mais calmo, pôde notar.
-Ei, Arlete. O Ariano começou a tomar esse remédio ontem. Um comprimido por dia. Como pode estar faltando três comprimidos?
Arlete caiu em si, e concordou com o marido.
-Minha nossa... Ele ingeriu dois comprimidos de uma só vez, só pode ter sido isso.
-Por que ele faria isso? O Ariano é um menino responsável com essas coisas.
-Eu sei, eu sei... Que sensação esquisita... – Disse ela, arrepiada.
-O que foi, Arlete?
-Aquele amigo do Ariano, o Euclides. Ele dormiu aqui. Passou uma coisa pela minha cabeça.
-Você acha que ele fez isso? Dissolveu mais um comprimido na água?
-Pode ser... Não sei. Mas seja o que for, eu vou descobrir. Quando o Ariano acordar, eu vou descobrir tudo. – Afirma ela, convicta.
CONTINUA NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA...

domingo, 27 de setembro de 2009

Inexplicável presença


Meia noite e vinte cinco. Sinto seu chamado, seu perfume. Sussura em meus ouvidos a urgência do encontro. Subitamente tomo a decisão de sair pra rua. Visto um sobretudo preto por cima do microvestido de mesma cor, fecho os botões até a altura dos seios, deixando descaradamente à mostra parte substancial do meu colo. Calço sandálias altas, trançadas por finas tiras até a altura das panturrilhas, o que faço com delicadeza, para não estragar as unhas dos pés, pintadas ainda a pouco. Passo alguma maquiagem, nada além de um forte risco de lápis preto, um rímel para curvar os cílios e um batom cor de boca, apenas para dar algum brilho aos lábios naturalmente encarnados. Uma breve gota de perfume atrás das orelhas, na dobra dos cotovelos e joelhos, nada exagerado para não interferir no feromônio que minha pele exala.


Deixo a porta bater atrás de mim e saio pelo corredor do prédio, sem olhar pra trás, ouvindo a harmoniosa percurssão do salto da sandália com o chocalho de minha tornozeleira. Cumprimento brevemente o porteiro, que quase não me reconhece naqueles trajes, acostumado a ver apenas meu visual saia lápis, blusa comportada e óculos de grau, possivelmente demorou a absorver a cena que acabara de presenciar. Sigo decidida pelas calçadas. Não quero dirigir. Quero o frescor da noite, quero olhar de perto os personagens que o dia esconde e que só a escuridão pode revelar.

Continuo andando a esmo. Os sons da noite são variados, mas a cor é habitual, de um cinza escuro e denso. Como a aura dos nossos encontros. Rodopio dentro de minha mente, tentando imaginar a rota ideal para o desfecho da cálida noite. Quero encontrar o local exato, tenho faro pra isso e a direção do vento impulsiona a busca. Quero companhia, mas não aquela do dia a dia, dos colegas de trabalho. Quero ele, somente ele. Quero outro tipo de conversa, estou cansada de seminários e palestras, de dissertações dos catedráticos a respeito da Grécia antiga, da cultura clássica, dos mitos. O único comparativo capaz de despertar em mim algum interesse é a possibilidade de encontrar meu próprio deus. Metade Apolo, com seu arco e flecha, sua música, sua poesia, sua perfeição e a outra metade composta por uma desordem dionisíaca, imperfeita, lasciva, extasiante e enebriante. Quero esse ser, que me desafia a brincar de ser deusa, que me desperta os mais fortes sentimentos, sabendo da minha mortal fragilidade, aquele capaz de colocar em suspenso meu fôlego e capaz de devolvê-lo ao esboçar um simples sorriso.

Entro num bar de aspecto soturno, um tipo de lugar no qual jamais entrei. Para minha surpresa, gostei do ambiente, da iluminação rarefeita e da música, tocada ao piano. Sento-me cruzando as pernas, num gesto de feminilidade impensada e peço ao garçom que está diante de mim, uma dose de Chivas com bastante gelo. Ele anota o pedido e se dirige ao balcão, num andar meio atrapalhado e logo retorna, com um copo contendo a bebida e conforme eu pedi, muito, muito gelo. Mais que a bebida, eu queria o gelo. Não resisto a uma brincadeira com a ponta da língua nos tais cubos, são quase um vício, como se acaso tivessem eles algum sabor. Sorvi o líquido acastanhado do copo num só trago, para depois umedecer os lábios com a frescura dos cubos que me esfriavam também a língua. Mais que rapidamente pedi ao garçom que completasse novamente a dose e repeti o mesmo ritual ilógico.

Depois de inúmeros goles e gelos, me sopra ao ouvido uma voz grave e acalorada, arrepiando meu corpo da nuca ao cóccix. Sim, ele havia chegado. Não sei como se dá nossa sincronia, que sinais seguimos, que rastros deixamos pelo caminho, são fatos acima da minha compreensão, mas o importante é que sempre nos encontramos. Eu sigo uma espécie de intuição, mas na verdade sei que é ele que me encontra. Aceito o convite dito entredentes ao pé do ouvido. Nos olhamos fixamente nos olhos, castanhos claro e escuro, misturados numa espécie de luxúria que se mostra tremenda...

Saímos para a rua e num ápice estamos em uma espécie de jardim ou parque, rodeados somente por árvores e com o luar acompanhando e iluminando o caminho. Damos as mãos enquanto fitamos o céu por um minuto para, em seguida, eu começar a mimá-lo como merece. Encaixo-me entre suas coxas e brinco com sua língua tal qual com o cubo de gelo. O beijo salivante não mente e faz de nós dois, um só. Ele se despe das negras roupas e eu faço o mesmo. Nos entregamos ao acontecimento tão esperado e sempre tão perfeito, sem haver qualquer preocupação com o mundo que nos cerca. Os beijos são dados uns atrás dos outros. As bocas não param de se alimentar mutuamente das salivas trocadas e é díficil pensar na posterior separação. Sabemos que é verdadeiro, ainda que sem razão. Queremos a loucura do amor e do sexo ardente, da paixão. Nossas mãos passeiam corpos afora, por entre nucas e costas. As peles reconhecem-se, são as justas, as certas, indiscutivelmente criadas uma para a outra.

Ainda embalados pela perfeita entrega de corpos, fluidos e almas, temos nosso momento abruptamente interrompido por uma espécie de chamado, que eu não sou capaz de ouvir. Algo que o faz parar e ainda que lamentando, vestir-se e despedir-se sem explicações. Às vezes é assim que acontece. Ele me beija o canto do lábio, me olha com olhos marejados e parte, tornando-se etéreo simplesmente. Não sei de onde ele surge, como me encontra, para onde vai, o que faz depois de partir. Não sei se ele é mesmo um tipo de deus, se é um anjo sombrio, se é parte de mim ou se sou parte dele. Não sei sequer seu nome, que dirá endereço. Nada sei... Somente conheço seu perfume e ouço sua voz me chamar em noites inesperadas.

Volto para casa, cambaleante por entre árvores, postes, carros, pessoas... Passo pelo porteiro sem dizer palavra. Entro em casa com sandálias nas mãos, maquiagem desfeita, sobretudo aberto e marcas no corpo, vestígios que só o espelho sabe verdadeiros. Depois de refazer toda a sequencia mentalmente, começo a achar que enlouqueço e que minha mente perversa foi capaz de criar até mesmo as marcas. Talvez tenha sido a bebida... Todos os encontros podem não ter passado de fantasia criada pelo álcool... Cansada de confabular com meu inconsciente, adormeço...

Sem descansar o bastante, recomeço minha jornada habitual pela manhã. Tenho que voltar a usar minhas roupas discretas e trabalhar, ser a professora de todos os dias, aquela a quem nem o porteiro dá importância... Porteiro... Tocando minha campainha, o que será que ele quer tão cedo?

...

Agradeço pela gentileza e fecho novamente a porta, completamente perplexa. Em minhas mãos a tornozeleira que um jovem deixou depois que eu cheguei, na madrugada e pediu que me entregasse pela manhã. "Era um rapaz pálido, tinha um ar misterioso, trajava roupas pretas. Esqueci de perguntar o nome do sujeito e quando fui atrás dele, ele desapareceu rapidamente, como se fosse poeira. Muito estranho..." Foi só o que o porteiro soube dizer. Ótimo! Era só o que eu precisava saber.

sábado, 26 de setembro de 2009

VIDA NOVA




Não quero mais ser como era antes,
Como eu era antes?
Não sei!
E agora como sou?
Só Deus sabe!
Só sei que não quero ser como outrora,
Quero ser a vilã da história,
Deve ser mais divertido!
Cansei da vida pacata de “boa mocinha”
Quero ser sim, agora sim, quero ser a megera
Que me acusastes ser.

Ser aquela que fez sim, e que não fiz,
Que pena, ia morrer de rir!
Mas, em meu intimo ainda glorio-me
Da minha palma batendo fortemente
Naquela face de pêssego estragada,
Onde escondes toda sua cretinice,
Que mais que merecidamente o alarme
Do pinóquio fora destroncado!!
Ahhhh, como quero rolar de rir
Das maravilhas que virão!
Das noites de extrema escuridão quero
Tirar-lhes o mais doce mel,
Que só posso prová-los na imaginação.
Ahhhh, quero não mais como ser como ontem,
Quero ser abundantemente a transbordadora
De amor, alegria e paz, é tudo o que eu quero!

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O Brasil é muito grande para se preocupar com Honduras


...Finalmente tomei coragem, peguei o controle remoto e desliguei a TV, pois o assunto da semana está realmente me cansando afinal de contas, era só o que faltava um país na condição do Brasil que tem tudo para ser o líder na América latina, tomar partido de um presidente deposto por suspeita de corrupção e por querer alterar a constituição de seu país, um tal Zelaya, que pelos últimos acontecimentos podemos perceber que é da mesma laia de Chaves e Morales.

Queria me poupar, mas após desligar a televisão meu pensamento ainda estava naquele assunto, me perguntava e procurava entender porque estávamos nos intrometendo em assunto dos outros, de outro país da conturbada América central.


Resolvi então fechar os olhos e neste momento comecei a visualizar meu país, nosso Brasil, vi, na tela do meu pensamento o mapa do nosso Brasil e como numa aventura de Monteiro Lobato, inspirei o pó de pirlimpimpim* e comecei a sobrevoar nossa linda nação.

Comecei lá na pontinha do Brasil, na região sul,visitei os pampas gaúchos,fiquei encantado com os canions de aparados da serra e fui subindo,pude ver de perto nossos irmãos de Santa Catarina reconstruindo suas casas e suas vidas após as enchentes e os vendavais que por lá passaram,vi o Paraná com seu povo valente lutando contra a gripe suína e chegando a região sudeste,visitei a grande São Paulo e vi lá de cima seu povo trabalhador,enfrentando quilômetros de transito todos os dias,além de poluição e violência e mesmo assim fazem de São Paulo a maior metrópole da América Latina,um grande centro de negócios com intensa movimentação cultural e artística que reúne grande diversidade de povos e culturas que fazem com que esse estado fique cada vez mais rico e interessante.Continuando minha viagem chego ao rio de Janeiro,como diz aquele famoso samba:”terra do samba,da mulata e do futebol” e também das belas praias, do povo alegre e hospitaleiro,mas também das inúmeras favelas,do tráfico de drogas e do poder paralelo em guerra com o estado,o lugar dos contrastes sociais e das crianças invisíveis por grande parte da sociedade,o Rio da garota de Ipanema e das balas perdidas .

Saindo da cidade maravilhosa subo um pouquinho mais na minha aventura pelo Brasil e chego ao Espírito Santo com sua beleza natural e ainda na região sudeste não podemos deixar de passar em Minas Gerais com toda sua riqueza e história, com suas cidades que são patrimônio histórico da humanidade e com sua capital Belo Horizonte que na época de sua fundação tinha um projeto urbanístico considerado perfeito e hoje se vê desfigurada como as grande metrópoles pelo crescimento desordenado e a má gestão publica.

Agora, saindo de Minas e indo um pouco mais para esquerda em nosso mapa chegamos a nossa capital federal, a bela e planejada Brasília com suas beleza arquitetônica e seus contrastes socias, agora estamos na rica região centro-oeste onde o Brasil concentra em grande área a pecuária e é também a região onde está situado nosso pantanal que também com sua riqueza, é considerado patrimônio natural mundial e reserva da biosfera. Nesta região,nas fronteiras com países como a Bolívia que precisamos ter mais cuidado,mais policiais federais zelando por nosso pais,pois por ali que entram grande parte das drogas e das armas que abastecem o poder paralelo hoje instalado em nossas grandes cidades.

Continuando nossa viagem, saindo do Mato grosso e já chegando a Rondônia, entramos na região norte do país, onde está situada a grande floresta amazônica que equivale a mais de um terço das reservas florestais do mundo e sendo também a maior bacia hidrográfica do mundo formada pelo rio amazonas e seus milhares de afluentes. É uma região que precisa de muito cuidado e atenção do nosso governo,pois faz fronteira com vizinhos que precisam de ter mais paz em seus territórios,vizinhos como a Colômbia que luta há muito tempo contra o tráfico de drogas e possui um forte movimento armado na região de fronteira com nosso país(Farc),além disso,ainda temos como vizinha a Venezuela que hoje é governada por um cidadão que traz mais instabilidade para região por suas atitudes radicais e contraditórias.

Passando pelo belo Pará, depois de passar pela linda Santarém e por sua capital Belém, finalmente entramos no Nordeste pelo estado do Maranhão, visitei os lindos lençóis maranhenses e pude ver naquele estado tão bonito, um povo sofrido, mas feliz, um povo que há muito tempo vem sendo dominado por certa família que há muito tempo esta no poder neste país, poderia já ter levado muitos investimentos para esse povo e para esse estado, passamos pelo Piauí e depois no lindíssimo Ceará com suas praias maravilhosas,quando sobrevoei Jericoacoara, minha vontade foi aterrissar e tomar uma água de coco e curtir o sol, mas minha viagem tinha de continuar, tive de visitar a população carente do Ceará, pois não falam na mídia que a maioria da população do campo é pobre, precisa de atenção, investimentos.

Seguindo o litoral, agora avisto o belo Rio Grande do Norte com suas maravilhosas dunas, passei por lá rápido, pois o efeito do pó de pirlimpimpim já estava acabando e ainda tinha de passar por lugares muito importantes. Segui viagem e passei pela Paraíba,terra de Augusto dos Anjos e José Lins do Rego,aumentando minha velocidade cheguei a Pernambuco, terra do frevo e de tanta alegria,terra tão linda e também tão carente de investimentos e atenção do governo,lugar onde encontramos paisagens maravilhosas e,infelizmente altos índices de violência,crianças vivendo em favelas sem as mínimas condições de higiene e sem um tratamento adequado.

Passei rapidamente por Alagoas e não pude deixar de ver a bela Maceió e o encontro do rio São Francisco com o Oceano Atlântico. Que lugar maravilhoso!

Não pude deixar de lembrar que neste belo estado, também saíram alguns “figurões” da nossa política nacional e que poderiam (se quisessem) dar mais atenção a esse povo tão aguerrido ao invés de pensarem somente em si e nos seus.

Descendo um pouco mais, passei por Sergipe, avistei e suas atrações turísticas e belezas naturais, mas não pude deixar de olhar grande parte do estado, assim como grande parte do nordeste em geral que sofre com a seca e com o abandono do governo.

Finalmente cheguei à Bahia, conhecida também como a “terra da Felicidade” por conta de sua população alegre e festiva, tornando através do seu grande potencial turístico o estado mais rico do Nordeste, mas isso não contribui para que seja melhor,ao contrário é um estado de contrastes e de visível má distribuição de renda,é só andarmos pela grande Salvador que nos deparamos com muitas crianças carentes e com situações de violência gerada pela desigualdade social das grandes cidades brasileiras.

Chegou o momento de voltar para casa, o efeito do pó de pirlimpimpim já acabou, é hora de abrir os olhos e me ver novamente sentado na minha poltrona do “Papai” e pensar que nessa pequena viagem que fiz no meu pensamento em que percorri alguns lugares desse nosso imenso país e me deparei com tantas situações sociais graves que o nosso Brasil ainda tem de resolver para dar uma condição de vida melhor a esse povo tão bom, tão feliz, tão corajoso, que levanta cedo para trabalhar com brilho nos olhos de esperança por dias melhores.

Não consigo realmente ver uma importância, ou mesmo uma necessidade de nos intrometer-mos nos problemas alheios, muito provavelmente neste caso estamos servindo de “bode expiatório” para algum governante radical criar movimento e o pior é que com o consentimento e apoio de nossos representantes, correndo um sério risco de colocarem a imagem de nosso país em situação difícil perante o mundo.

Se for para darmos asilo político a esse cidadão, então que ele venha para o Brasil conforme manda a lei, agora criar um gabinete de resistência dentro de nossa embaixada é algo inadmissível e desrespeitoso com a soberania de Honduras. Fazendo isso o Brasil esta saindo de seu lugar de grande mediador e se colocando no lugar de agitador. É preciso que pensemos nas conseqüências que tal atitude pode trazer futuramente para nossa nação.

Desejo que o povo de Honduras, juntamente com seus governantes resolva esta lamentável situação da maneira mais pacífica possível.

Até onde entendo o que penso é que devemos olhar para dentro de nossa casa que é tão grande e ainda é tão carente.


*O pó de pirlimpimpim é uma criação de Monteiro Lobato, na obra O Sítio do Pica-pau Amarelo, é replicado em outras; era utilizada pela boneca Emília, as crianças, Pedrinho e Narizinho, o Visconde, para transportarem-se, magicamente, de um lugar a outro.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Fragmentos de uma expedicionária nos mares tortuosos do pensamento literário.



Um apanhado de pensamentos difusos que se concatenam em qualquer ponto num gráfico, onde a exaltação de ânimos quente e frios se encontram. Uma desfaçatez numa mente e num corpo que abrigam múltiplas personalidades que a alma num estado etéreo, por uma mera questão de sobrevivência, não pode se sobrepor. Assim, eis que volto ao túnel do tempo mais uma vez, e como Jasão, em busca do Velocino de Ouro, percorro com minha memória estatística, uma jornada cheia de incidentes cuja missão parece usurpar-se de um poder de provocar acontecimentos, confrontar sentimentos, proporcionar soluções, amargar a falta de respostas e tentar transcender a minha compreensão consciente. Eis que me encontro novamente nos anos 1990...e viajo dentro do meu Argos interior. Quantas vicissitudes me aguardaram depois disso.... em quantas tempestades meu papel e minha caneta se projetaram em dilúvio. E o final ainda não chegou.


I

Uma aflição brota do meu peito. A falta de coordenação dos pensamentos absorve meu tempo, consome minhas ideias, limita minhas ações exteriores. Tento associar palavras, construir um bom alicerce estrutural, mas a dificuldade é maior do que o que posso calcular. Milímetros de confusão me separam da lógica e nada posso fazer que possa evitar este mal entendido entre minha ideologia sã e a minha emoção desordenada.

II

Se queres crêr no seu potencial, trabalhe-o com disciplina e coragem, sem medo de errar. Sejas humilde e sereno perante as críticas e saibas discernir entre o verdadeiro e o falso julgamento.
O simbolismo neste pensamento messiânico que se apossou de minha natureza flamejantemente aventureira e nada filosófica, sem causa primária, aparente ou ardente, na verdade me expurga de uma culpa cristã pelo que nem sei ser o que é que quer que seja. Liberta, em transe, sem queixas ou tremedeiras, sem dogmas ou pudor, inebriante em contentamento, salubre em desfrutar, insignificante em seus convexos, fatídica ao transmutar. Passei pelo vale da loucura e não me deixei sucumbir.

III

Frases dispersas em bolos indigestos ao raciocínio. Os ingredientes não se complementam, não há como deglutir sem empapar. A mistura deu em confusão: tremendo pastelão!

IV

Há de se compreender que não ando muito bem da cabeça, não levem em consideração tudo que escrevo. Eu mesma sou uma receita mal elaborada que tinha intenção de ser saboreada, saborosa e digesta ao estômago do mundo. Eis no que deu! Uma massa propensa a fermentar em demasia, que mesmo lavada, amaciada, sempre corre o risco de ser depositária de fungos e apodrecer antes de ser aprovada ou provada por alguém quem quer que seja.

V

Me poupem! Não sou obrigada a ouvir besteiras de outrem. Minha jornada se inicia no final do beco onde os lassos, as lascivas, os lázaros, os insanos, os bestiais, se comungam e se remetem em idas e voltas ao terreno de Hades. Quero mais é me divertir com o que observo do mundo. Poços não faltam, mesmo que vazios. Por isso mesmo, depositem ali sua carga de fezes. "O mal é o que sai da boca do homem".

VI

Oxalá eu possa ter o prazer de ver o mundo acabar. Pode ser a maior experiência de vida a qual uma mente atormentada pelos grilhões das ambiguidades pode sofrer ou simplesmente experimentar antes da dose final. Mas devo querer poder vivenciá-la numa sã consciência de criadora de tormentos por letras atemporais. Será incrível descrever os orgasmos múltiplos dos sadomasoquistas; a exacerbação retórica e retangular dos filósofos em sua última tentativa de comprender e explicar os fatos de um mundo circular e giratório. Onde se encontram o início, o meio e o fim? As bestas não pouparão esforços para se ajoelhar e orar por perdão por suas inquisições pervertidas em nome do Criador; os muçulmanos se ajoelharão tentando encontrar o ponto onde Meca deveria estar, sem saber ao certo se o que procuram é Alah ou as sete virgens prometidas no seu paraíso corrompido pelo aroma queimado de carne.
As crianças estarão a pensar estar em mais um show de efeitos especiais de seus heróis japoneses; os animais continuarão a pastar. Sua sina há muito se tornou fatídica num mundo de misérias onde eles são os principais personagens explorados de uma máquina de moer seres, que respiram o que um dia foi chamado de oxigênio.
Os mercenários não terão tempo nem mãos suficientes para guardar as toneladas de papéis cheios de sifrões que acumularam sugando em conta-gotas o sangue dos seus (semelhantes ?). Os drogados acharão este itinerário da viagem fabuloso, nunca obtiveram tamanha OnDa onde navegar sua insuficiência cardíaca; os jogadores correrão para a última aposta: acaba tudo ou não acaba? Os ditadores acharão em sua insana sede de poder , que poderão controlar o processo e se utilizarão de suas defesas para destruir o que já está por ser detonado sem sua permissão. Pobres almas cegas e solitárias...

VII

Os escritores...estes se regozijarão por mais uma fonte de inspiração; a mídia, infame, maldita, espetaculosa e frenética, tentará confundir nossa visão apocalíptica diante dos trovões de anunciação do final, com flashes de papparazzis em busca do entrevistado mor, para que no Ibope, sua audiência não venha a despencar. De quantos anjos tocando suas cornetas é formada a orquestra celestial?

VIII

Tudo isso me desce como profecia diante das minhas culpas subliminares de coito impregnado de maldições diante do Pai, do Filho e do Espírito Santo...porque somos feitos de mortalidade e carne que apodrece de tão vil... Deus com seus dedos gigantescos manuseando seu fliperama particular. Somos a sua máquina, ao seu dispor. Bolas pré-programadas, bandeiras e túneis, valendo mais pontos que outros. Livre arbítrio. Onde? Porque Moisés foi ele e não eu? Os escolhidos então serão eternamente salvos por serem escolhidos. E eu não fui escolhida por qual razão?

IX

Viajei no tempo. Quero parar de escrever, mas não consigo parar de pensar. Parte de mim se encontra neste planeta. A outra parte se encontra onde não posso identificar por nome ou parentesco definido. Pudera eu, com essa pré-disposição, encontrar em uma dessas esquinas Fernando Pessoa e sair pelos parques e vielas, em sua companhia tão deliciosamente Nata de Belém e aroma de café passado na hora, delirando poesia e desasossego na alma-------------------------
------------------------literatura por todos os poros-----------------------------------------------------
Não possuo esta vocação latente. Eu tento. Às vezes tudo o que vaza de mim é tão medíocre que me analiso terapêuticamente e me julgo masoquista em tentar o que não foi me dado sublimemente. Não fui escolhida. Não fui Camões. Não suo as águas marítimas do descobrimento. Não lambo o sal da língua portuguesa em formação.
Autopiedade? Teimo em escrever. Teimo em querer transmitir. Teimo em querer transmutar alquimicamente o papel em narinas que respiram alma e vida. Sopro de ar.
Tudo é tão insalubre. Nada do que escrevo me dá água na boca ou brilho nos olhos. Tenho a sensação íntima de que nem um doente em estado terminal, teria vontade de sobreviver com esta máscara de oxigênio. Pasto neste sentimento vazio e contínuo, nesta busca desenfreada, tentar me encontrar. Tentar a fórmula milagrosa que possa mover meus dedos, sem tanto sofrimento por cada tentativa inglória.

X

Secou-se a fonte da verdade do meu cotidiano. A verdade temida era outra que não aquela, joguei-a no lixo. Tomou o seu lugar uma energia mais forte e clara, que resolvi definir como verdade primordial. A anterior já não me satisfazia mais. Ficou encalhada num canto empoeirado. Agora foi para onde deveria estar há muito tempo. Não senti pena, não consegui me comover com seus lamurientos pedidos de segunda chance. Falhou tantas vezes antes, que só consegui ser indiferente a ela, com um certo toque de crueldade que eu sabia desnecessário, me despindo da fantasia literata de autora. Sou tradutora, uma traidora do que outros escreveram em primeira mão e tento sempre, eternamente, inutilmente , herméticamente, hermenêuticamente imitar. Para que nos sinais encontrados pelos arqueólogos do futuro, eu possa me enquadrar como possibilidade de escrita. Com gosto de expedição por mares que já foram navegados, mas não explorados da mesma maneira que eu os explorei e provei do seu sal, do seu espírito, do seu ar.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Muito prazer, sou de leão

Ela queria ser uma criatura delicadinha, regida pela lua, pois seria bem mais fácil viver... Mas nasceu regida pelo sol e por isso está estigmatizada, fala alto e só dela mesma...


Seria mais simples, menos intenso, cobraria menos de si mesma, seu ego seria menor...
Às vezes ela sonha em ser apenas uma dona de casa que se diverte atrás de um avental assando tortas, pois seria menos doloroso, mas não, quer aplausos. Quer aplausos de pé.



Ela tentou se enquadrar, mas não deu certo, é espalhada, é da arte, gosta de gente vulgar, de gente que não vem a passeio, que não segue regras...


Ela despreza tudo que é medíocre, que é mesquinho, que é avarento, que é cinza e congelado, pois só quem gosta de escuridão é toupeira e mesmo assim porque já nasceu cega.
Queria ser Maria Antonieta e usar perucas adornadas com brilhantes, e ser dona do mar, e ser dona de todas as músicas já cantadas e de todas as promessas de amor...


Queria morar em um castelo e demandar a vida alheia e não ter que fazer malas e nem pagar a conta do cartão de crédito....




Filhos do sol se acham filhos do rei, mas não o são, nascem no mundo real, onde tem que trabalhar, criar filhos e lavar louças e ninguém sabe o quanto isso é mais difícil para quem tem certeza de que há uma coroa incrustada em sua cabeça... Filhos do sol dramatizam tudo, transformam tudo em arte, em piada, pois a vida deve ser bela como era na corte, e que bom seria se todos seguissem suas fantasias, fugindo dessa burocracia retilínea que alguns impõe para sua vidas....


Mas basta você dar uma espreguiçada maior, para alguém já te olhar de cara feia, por isso, às vezes é mais fácil ser guiado pela lua, sem explosões, sem muitas vontades, sem narciso...
Mas... Ela não se importa, quer seus aplausos, sua coroa, mediocridade alheia edifica seu caráter... E vamos a luta, lavar a louça de coroa e tudo!
Muito prazer, sou de leão.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O homem que queria ser outro - Parte 5 - Acolhimento

Olá amigos leitores! Espero que tenham uma ótima leitura. Deixem, nos comentários, suas sugestões para o futuro da história. Assim, criamos uma interatividade maior entre autor-leitor. Deixem também críticas, construtivas ou não. Opinem. A opinião de vocês é essencial para o andamento da história. Abraços, Lohan.





Ela estava olhando para o lado. Aquela pose, esbanjando toda a naturalidade que uma mulher pode ter... Aquele ar de seriedade e ao mesmo tempo, um ar mais leve que uma folha de outono sendo carregada pela brisa vespertina... Foi uma foto relâmpago; como ela ficara brava com aquela atitude! O jovem precisou se desculpar umas duzentas vezes. E a enganou, dizendo que havia apagado a foto do arquivo de sua câmera digital. Ora, aquela raridade... Aquela fotografia era mais preciosa do que o mais consagrado quadro do museu do Louvre, seria um pecado capital riscar aquele momento único dos anais da história daquele jovem. Ficava a observando durante horas... Imaginando uma nova maneira de se aproximar, de criar um subterfúgio para um encontro, de “criar uma coincidência” – um esbarrão no calçadão de Copacabana, um encontro fortuito na mesma sala de cinema. Mil possibilidades invadiam sua mente séquida de idéias, projetos, contos, crônicas, personagens, letras de música, melodias... Uma mente repleta de lâmpadas incandescentes, que nunca se apagavam.


Mas aquela luz, que já tanto ofuscou o brilho dos sóis de verão que circulam pelos universos de seu mundo particular, agora se apagava, lentamente. Os lugares escuros continuavam escuros, não enxergava saída para nada. Antes, o fim do túnel sempre estava iluminado. Hoje, nem tanto. Não sabia o que acontecia consigo...
-Ariano? – Chamou Arlete, adentrando em seu quarto.
Ariano fecha rapidamente o ícone da foto de Lia Neide em seu computador.
-Oi mãe. Eu estou bem, ok?
-Hum... Mas o que é isso agora, está me expulsando, é danadinho? – Riu a mãe, indo abraçá-lo.
-Não, né mãe... É que eu posso prever certas perguntas.
-Bobinho! E então, não vai vir jantar com a gente?
-Não, obrigado. To sem fome.
-Não tem essa! Precisa se alimentar direito. Se quiser, eu trago seu prato aqui.
-Não precisa, mãe. Eu já vou, está bem assim?
-A Julia ligou enquanto você dormia. Ela mandou um beijo pra você. E disse que precisava te contar uma coisa...
-Me contar uma coisa? Estranho... Ah, deve ser sobre o texto do Euclides. Ela deve ter odiado. – Sorriu – Sabe, a Julia não vai muito com a cara dele.
-É... Esse seu amigo...
-O que foi, hein mãe? Até você?! – Reclamou.
-Não disse nada, ora! Bem, eu vou indo. Não vai demorar, hein. E nada de ficar horas a fio diante da tela desse computador, o médico...
-Ok mãe, sem sermão! Já basta o do médico.
-Você nem precisa de sermão, Ariano. Já é bem grandinho para ter consciência das coisas. Aliás... Sábado alguém faz aniversário...
-Ih mãe, nem me lembra disso. Eu não gosto de fazer aniversário
-Ei, o que e isso agora? Você sempre gostou!
-Os tempos são outros. Além do mais, nem tem clima para isso. Olha como estou! Todo ferrado aqui, a base de remédios.
-Não exagere. Você sabe que poderia ter sido bem pior. Essa sorte que você teve é mais um motivo para comemorar. Está aí, saudável, graças a Deus, filho! Olha, pode ir esquecendo essa história de aniversário sem comemoração.
-Até sábado a gente resolve isso, mãe. Agora deixa eu terminar minha pesquisa aqui.
-Pesquisa... Sei... Eu percebi que você estava vendo a foto de uma menina.
-Você viu??
-Ah, tenho olhos de águia, Ariano! Não conhece sua mãe? – Sorriu.
Ariano enrubesceu.
-Não precisa ficar com vergonha da sua mãe. Eu e seu pai já notamos que o senhor está apaixonado. É visível.
-Nossa, dou tanta bandeira assim é?
-É, pra você ver... Aposto que é aquela secretária nova do jornal. A tal da... Lia... Não é esse o nome que você disse uma vez?
-Poxa, você é mesmo curiosa, hein. É ela mesma... – Disse, em tom melancólico.
-E por que essa tristeza toda?
-Ela não quer nada comigo. Já tentei duas vezes. Levei quase um dia inteiro para tomar coragem e... Chegar nela, sabe... E no fim das contas, levo um fora.
-Ela te deu um fora? Mas ela foi gros1’sa com você?
-Não, não! Até o fora dela é apaixonante, mãe. – Riu-se, abobalhado - Acho que é a voz dela. Sempre que a ouço meu coração parece que vai explodir. Uma sensação que nunca senti, nunca mesmo.
-Meu Deus, Ariano... Você está mesmo com os quatro pneus arriados por essa moça. Bem... Ela deve ter os motivos dela para ter feito isso com você. Tenha calma, tudo há seu tempo. Vai ver, não é essa a hora de vocês ficarem juntos. Não é você mesmo que costuma repetir aquela frase do Fernando Sabino, seu cronista favorito?
-No fim tudo dá certo, se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim. – Disseram em coro, a um sorriso.
-Mas é isso, filho. Olha, você que escreve tão bem, nunca pensou em escrever uma poesia de amor para ela? Por que não arrisca? Não há mulher que não ame uma poesia escrita exclusivamente para ela. Rosas e poesia, a combinação perfeita. Quando seu pai me conheceu, ele enviou um cartão lindo para mim.
-Sério? Poxa, vocês nunca me falaram que ele escrevia bem!
-Haha – Gargalhou – Você na sabe da maior! Só depois - uns cinco anos depois - quando já estávamos até casados, é que fui descobrir a tramóia daquele danado. Você acredita que a poesia do cartão, que estava como sendo de sua autoria, era do Carlos Drummond de Andrade?
Os dois caíram na risada.
-Mas funcionou, filho. E sei que você não precisa copiar poesia de autor nenhum. Tem plena capacidade de fazer uma.
-É, eu... Inclusive tenho uma aqui, que fiz quando estava no hospital. Fala de amor...
-Pois então. O que está esperando para enviar a ela?
Ariano mordiscou a ponta do dedo indicador, risonho. Começara a gostar daquela idéia da mãe.
Neste momento, seu celular toca. Ariano estica o braço e o apanha sobre o móvel, ao lado do computador. Ele confere o visor.
-É o Euclides... –Disse Ariano, atendendo em seguida – Alô, Euclides?
Euclides perambulava pelo calçadão de Copacabana, feito um moribundo.
-Ariano, meu irmão! – Cumprimentou, com a voz cortante de desespero.
-O que foi, parece nervoso...
-É, estou passando por uma barra pesada. Tive uma discussão séria com meus pais. Eles praticamente me expulsaram de casa, amigo. To muito mal, perdido pelas ruas aqui... – Muito lamurioso.
-Caramba, fique calmo. Não vai fazer nenhuma besteira, você está de cabeça quente. Para onde está pensando em ir?
-O que houve, filho? – Indagou Arlete, quase afônica.
-Ariano, eu estou sem rumo. A última coisa que quero é voltar para casa. Não tem condições.
-Venha para minha casa! Você tem o meu endereço, não tem?
-Sim, sim, eu sei de cor... – Disse, prendendo um riso dentre os lábios.
-Então, não perca tempo. Venha, sem problemas. Aqui nós conversamos, você pode passar a noite aqui, e amanhã, de cabeça fria, você resolve sua vida.
-Eu não quero incomodar você, amigo. De maneira alguma. Nunca nem fui a sua casa, e logo nessas condições eu irei!
-Se você não vier, ficarei preocupado. Não vai incomodar em nada, deixa de tolice. Você será sempre bem vindo... Aliás, eu to precisando mesmo de uma companhia mais próxima. Será boa a sua presença aqui em casa.
Euclides regozijou-se de alegria.
-Ariano... Você é mesmo excepcional. Te agradeço de coração. Pensei que estivesse chateado comigo, devido aquela discussão que tivemos por telefone...
-E eu pensei o mesmo! – Sorriu – Já esqueci, isso acontece. Não demore chegar, vou esperá-lo para o jantar.
Euclides sorri, cessando os passos.
-Me espere, amigo. Me espere...
Desligaram.
-O Euclides, aqui em casa? – Espantou-se Arlete.
-Qual o problema, mãe? Você ainda alimenta algo contra o meu amigo?
-Nunca alimentei nada contra ele. Eu só acho que vocês ficaram amigos rápido demais. Só isso.
-Não consigo te entender... Prefere me ver sem amigos, é? Ele está passando por um momento difícil, brigou com os pais. Preciso ajudá-lo. Tenho certeza que ele faria o mesmo por mim.
-Está bem, meu filho... Me desculpe. Ele será bem quisto aqui. – Disse, um pouco contrariada - Como você mesmo disse, lhe fará companhia na hora certa. Agora eu vou lá esquentar a janta. Fique bem, querido.
Arlete beija a testa de Ariano, e se retira do quarto. Ariano reflete durante alguns instantes sobre a vinda de Euclides a sua casa. Mas não demorou muito para Lia Neide tomar conta dos seus pensamentos. Ele se direciona novamente para a tela do computador, e abre a imagem dela. Seu rosto se ilumina. Em seguida, abre sua caixa de e-mails.
-Euclides... Graças a você eu salvei essa poesia.
Ariano abre a caixa de e-mails enviados, e lá procura pelo ultimo e-mail que enviou a Euclides. Finalmente, o encontra.
-Eis a poesia que deletei. Esta ressurgirá das cinzas, e vai tocar o coração dela. – Disse, confiante.
Copiou a poesia e a colou em um arquivo de seu computador; logo depois a enviou para Lia Neide.
-Pronto. Agora só faltam as rosas.
Vinte minutos antes...

Euclides escreve um bilhete enquanto sua avó jaz ao pé da escada.
- “Mãe, pai – Não agüento mais. Cansei disso tudo, dessa indiferença, esse menosprezo comigo. Hoje vou dormir fora, pensar muito na minha vida, e tentar encontrar uma solução para todos esses problemas. Quem sabe assim, na minha ausência, vocês não pensem mais em mim?”.
Euclides dos Santos

Euclides deixa o pedaço de papel e a caneta sobre a mesa de centro da sala. Ele relanceia o olhar para a avó morta, e respira fundo. Vai até a escada, desvencilha-se do corpo da avó, sobe a escada e se dirige até o quarto da falecida. Lá, ele abre a ultima gaveta da sua cômoda de mogno dos anos cinqüenta, e retira algumas peças de roupa que ali havia arrumado. Euclides pressiona um dos extremos do fundo da gaveta, e o desencaixa. Já tinha conhecimento daquele fundo falso. Certa vez, bisbilhotando a avó, ele a viu esconder um montante de dinheiro naquele local secreto. Sempre esperou o momento certo para por as mãos naquelas economias tão inocentemente escondidas. Ao se deparar com a quantidade de dinheiro, se surpreende. Havia, ali, mais de trinta montantes de cem reais.
-Nossa... Velha burra. Podia ter depositado tudo numa conta, mas não... Medo de ser assaltada quando sacasse o dinheiro. Medo do banco roubá-la. – Ri, extasiado com toda aquela grana diante de seus olhos epiléticos - Mentalidade de velho é um problema sério.
Euclides apanha uns quatro montantes daqueles, e encaixa o fundo falso da gaveta, deixando o restante lá.
-Não posso deixar vestígio de roubo, nada disso. Se ninguém descobrir esse esconderijo, depois dou cabo do resto. – Pensou em voz alta.
Euclides guarda o dinheiro em um envelope pardo, o dobra e o coloca debaixo do braço. Ele desce a escada, olha a avó por uma última vez, e assopra um beijo para ela.
E deixa a casa.
Passa pela portaria as sete horas e dois minutos. O porteiro, um senhor de idade, chamado Vilela, o cumprimenta, interrompendo sua novela, a qual assistia pela sua tv de quatorze polegadas.
-Bom estudo, Euclides! Não está saindo tarde hoje?
Euclides se deteve, já à saída, e pensou: “Esse porteiro, sempre intrometido”...
-Não, hoje não vou a faculdade.
-Parece nervoso. Aconteceu alguma coisa?
-Sim, aconteceu. Briguei com meus pais, vou dormir fora hoje. Adeus, Sr. Vilela.


Euclides segue seu rumo, deixando o Sr. Vilela “a ver navios”. Ele vai até o banco e deposita todo o dinheiro em sua conta. Depois vai direto para o calçadão de Copacabana, e por lá fica vagando, buscando idéias enquanto ouvia o marulho, observava os casais de namorados... Decide ligar para Ariano.


Euclides e Ariano jantavam à mesa da cozinha, sozinhos. Ambos terminavam seus pratos.
-Sua casa é linda, Ariano. Nem tão grande, nem tão pequena. É perfeita.
-Ah, que nada... Nada nem ninguém são perfeitos. Mas uma coisa eu tenho que dar graças a Deus: ao menos nesta casa, não há escada. – Sorriu.
Euclides quase engasgou. Tomou um gole do seu suco.
-Como assim... Impressão minha ou insinuou algo? – Perguntou, sempre desconfiado.
-Como? – Indagou Ariano, aturdido.
-Não sei, você disse que não tem escada... Não entendi.
-Por que eu insinuaria algo com isso, Euclides? Não tem escada! Se liga. Se esqueceu que eu cai de uma escada?
Euclides sente-se aliviado, bebe o restante do suco numa virada só.
-Ah... É verdade, “viajei” agora. – Sorri Euclides, sem graça.
A imagem de sua avó desabando da escada tomou conta de sua mente. Para riscá-la, ele logo puxa outro assunto:
-Ariano, sua mãe cozinha muito bem, cara. Nunca comi uma macarronada tão deliciosa.
-Cozinha mesmo. - Sorri Ariano, enquanto apeava os talheres, o prato vazio.
-Minha mãe não sabe nem fritar um ovo direito.
-Falando nisso, Euclides... O que houve afinal entre você e seus pais?
-Nós discutimos... Eles não se importam comigo. Minha mãe fica mais tempo dentro do closet dela escolhendo o vestido para a festa do que comigo. Meu pai, quando não está no trabalho, está malhando, ou vendo filme... Não existe diálogo, não existe afeto naquela casa. Sempre foi assim. Só que hoje eu resolvi falar.
-Já devia ter feito isso há muito tempo. Você tem 25 anos, cara. Eu, no seu lugar, já teria dado o fora. Nem que seja para casa de um amigo. Me acertava financeiramente, e encaminhava minha vida.
-Mas eu sempre vivi na esperança de ser... De ser notado por eles, sabe? De ser admirado, como um filho exemplar. Esperei vinte e cinco anos por esse dia.
-Chega de se iludir, Euclides. Busque seu espaço, de o seu melhor, e note-se a si mesmo. Só assim, o sucesso virá e, conseqüentemente, todos terão olhos para você.
-Como é com você, não é Ariano?
-Como?
-Todos têm olhos para você.
Ariano fica embaraçado, remexe nos talheres.
-Nem adianta vir com falsa modéstia. Eu sei disso. Inclusive eu te admiro muito.
-Eu agradeço, amigo. Mas nem todos tem olhos para mim...
Ariano faz uma expressão carregada de tristeza.
-Já sei. A Lia Neide...
-Ela mesma.
-Ela também admira você.
-Ela já te disse isso?
-Não, pô. Mas quem não admira?
-Admiração, somente admiração... ! Isso não é suficiente para alimentar a alma, Euclides. A alma...Ah, a alma necessita de amor! – Diz, com convicção – A minha alma está passando por um período de inanição, de sede, de calor. Eu sinto frio, Euclides.
-Eu te entendo. Mas não fica assim. Olha, mulher é que não falta nesse mundo. Por que não tenta esquecer a Lia?
-Esquecer a Lia?!
-Isso já está virando uma obsessão.
-Não, não é uma obsessão! – Alterou-se, contrariado.
-A Lia é muito cheia de coisa, esnobe. É o que eu acho. E quer saber... Ela nem é tão bonita como você diz...
-Pirou, Euclides? Você está falando da mesma mulher que eu?
-Estou sendo sincero, é a minha opinião.
Ariano balança a cabeça, indignado.
-Ok... Seja ela como for, eu a amo, e isso que importa. Ah, deixa eu te falar... Não sabe aquela poesia que enviei pra você aquela vez?
Euclides, que tinha os olhos fitos na mesa, os arregala, mirando Ariano a um sobressalto.
-Aquela... “Donde”?? O que tem ela? – Nervoso.
-Exatamente. Eu enviei a ela hoje.
-Espera... Você disse que enviou a Lia?? Mas, mas... Você não tinha...?
-Sim, eu a deletei. Mas a sorte é que havia enviado a você. Fui em meus e-mails enviados, e a salvei. Na verdade, ela ficou boa. É que naquele dia não estava atinando direito. Estava meio inconformado com a situação ainda, sabe como? Agora é torcer para ela aprovar, reparar meu lado poético. Pode ser um bom meio para conquistá-la.
As mãos de Euclides ficaram tremulas. Ele as ocultou sob a mesa. Não se sentiu assim nem quando assassinou a avó, há menos de duas horas.
-Não vai me dizer nada, Euclides? Nem que foi uma boa idéia? Você leu a poesia, está boa, não esta?
-Ta, ta, claro que sim! Desculpa, mas é que... É que hoje eu to meio exausto também.
-Vamos para o quarto. Arrumamos sua cama, e você descansa.
-É, vamos. – Assentiu ele, com os pensamentos em turbulência.
“Céus... E agora, o que faço? Ela vai ler, vai questionar o Ariano sobre isso! Tudo virá à tona. Maldição!” – Pensava, enquanto lavava a louça.
Ariano, sentado a mesa, disse:
-Euclides, eu disse para não se incomodar!
-Já disse, eu quero fazer isso, cara. É uma distração.
Arlete aparece na cozinha, e logo adverte Ariano.
-Filho! Você deixou ele lavar as louças?
-Ele é teimoso, mãe. Deixa ele...
-Fique tranqüila, dona Arlete. É o mínimo que posso fazer para a agradecer todo esse carinho de vocês, essa acolhida.
-Que nada. E aí, o que achou da nossa casa?
-Maravilhosa. Não tem um terço do tamanho da minha, mas é a casa dos meus sonhos. Pra que casa grande, nunca gostei. O legal é assim... Um canto acolhedor, poucos cômodos... – Dizia, interrompendo o serviço - Os contatos são mais íntimos, tem mais cara de lar, de família. Uma família feliz. – Completou, em tom quase melancólico.
Arlete e Ariano se entreolharam, compadecidos pelo rapaz.
-Até piano vocês têm! – Sorriu Euclides, para logo disfarçar a tristeza que o abatera.
-É, riu Arlete, aquele “monstro” lá na sala pertence ao meu marido. Ele o tem desde jovem. O pai dele era músico.
-E ele toca com freqüência?
-Não, não! Se acomodou, há séculos que não toca! Mas o Ariano...
Euclides interrompe a lavagem novamente, e olha para Ariano.
-Ah, mãe... – Ri Ariano, modesto.
-O Ariano sabe tocar, e toca como ninguém. É o Mozart da família!
Euclides deixa escapulir um copo, que se quebra dentro da pia, e corta sua mão.
-Droga! Me desculpem, me desculpem!
Rapidamente ele começa a recolher os cacos na pia.
-Não, deixa que eu vejo isso, Euclides! Não se preocupe, isso acontece sempre!
-Viu, fui querer me intrometer em serviço domestico... Isso que dá.
Arlete tomou o lugar de Euclides. Ela repara algumas gotas de sangue na pia.
-Você cortou a mão. Deixa eu ver.
-Não foi nada...
-Claro que foi, deixa eu ver.
Euclides mostra a palma da mão a Arlete. Um filete de sangue escorria do pequeno talho.
-Leve o seu amigo até o banheiro, Ariano. E faça um curativo para ele.
-Não é...
-Vamos, Euclides. – Cortou Ariano – Siga-me.
No banheiro, Euclides pediu a Ariano que o deixasse sozinho.
-O material para o curativo está no armário. – Avisou Ariano, que se retirou em seguida.
Euclides trancou a porta. Olhou-se no espelho, que quase trincou com aquele olhar epilético poderoso. Pegou seu celular no bolso da calça e acionou sua caixa de mensagens. Lá, começou a digitar uma mensagem de texto:
-“Olá, Lia, como vc ta? Nem nos vimos hj, pq faltou o trabalho? Aconteceu alguma csa? Leu o txto que escrevi, substituindo o Ariano? Dessa vez não foi relacionado a esporte, rsrs. Espero que tenha gstado. Ah, mandei aquela minha poesia para o Ariano. Ele ficou de revisá-la para mim, estou com vontade de publicá-la no jornal. Vc permite isso? Afinal, ela agora é sua, rs. Bjs, Euclides.”
Euclides envia a mensagem.
-Mensagem enviada... Ah... – Suspira, aliviado – Por enquanto é o máximo que posso fazer.
Ele desliga o celular.
-Pronto. Agora não há como atrapalharem minha noite com noticias fúnebres...
Euclides lava a mão ferida, e enrola nela uma gaze. Sai do banheiro.


A noite ia alta, e os dois rapazes já estavam deitados, cada um em sua cama, sendo que Euclides estava deitado em um colchão, no chão. Logo acima dele estava Ariano. Sem sono, os dois conversavam de luzes apagadas.
-Obrigado, meu amigo... Depois daquela discussão que tivemos no telefone, pensei que não fosse mais falar comigo. – Disse Euclides.
-Imagina... Isso acontece. Além do mais, nem foi tão grave assim, existem coisas piores.
-Acha que foi bem substituído? – Graceja Euclides.
-Oh, claro que fui... Você escreve bem. Mas precisa melhorar em alguns detalhes, como atualização vocabular. Precisa ser mais despojado, menos “quadrado” na escrita.
-Cara, eu fiz Letras, e entendo disso melhor que você.
-Pra escrever bem, não é de praxe ser graduado em Letras. A escrita vai alem de qualquer ciência, qualquer curso. A magia da escrita... Quem escreve, é mágico. E para que ninguém descubra seu truque... É preciso fazê-la com maestria.
-Acho que a Julia não curte muito a minha escrita... Ela age muito estranha comigo. Ela nunca me criticou com você? Diga a verdade.
-Ora... De onde tirou isso, Euclides? Ela te tratou mal? – Disfarçou.
-Não... Bem, eu sinto que ela fala comigo quase que por uma obrigação. Não sei porque, nunca fiz nada contra ela.
-E nem haveria porque fazer, né. Ela é uma ótima pessoa. Na verdade, ela só comentou uma vez comigo que o santo dela não batia muito com o seu, que era para eu ficar atento... Bobeira dela. Não esquenta, ela é assim com várias pessoas. Muito intuitiva. Não sou muito ligado a intuições. Confio mais no meu poder racional.
-Bom saber disso. Então ela não te disse mais nada? Não me esconda, Ariano... Se não vou achar que não confia mais em mim.
-Não, não disse. Fique tranqüilo. Agora vamos dormir. Amanhã preciso acordar cedo para tomar meu remédio, esse que está sobre a escrivaninha. Odeio esse remédio, quase um mata-leão. Um comprimido que dissolvo num copo d’água já me deixa grogue durante um bom tempo.
-É, mas é preciso se cuidar. Vamos dormir... Boa noite.
-Boa noite.


Cada um virou para o seu canto. Ariano logo pegou no sono. Euclides permaneceu acordado por um bom tempo, de olhos bem abertos. Seu olhar epilético parecia reluzir no escuro de tão vivo. Uma vida que inspirava a morte. Pensou em muitas coisas... Principalmente no longo dia que estava por vir...


Na manhã seguinte, Arlete entra no quarto do filho. Ariano ainda dorme. A cama de Euclides está feita, e ele, já não estava mais na casa. Provavelmente saiu cedo.
Arlete balança o ombro de Ariano, que não desperta.
-Tadinho... Esse remédio acaba com ele... – Murmura ela, alisando a cabeça de Ariano.
Ela sai do quarto, e encosta a porta.
Eram onze da manhã quando Euclides chegava na entrada do prédio do jornal. Ele cumprimenta o porteiro e vê, a poucos metros, um casal discutindo, próximo ao elevador. Era Lia Neide e um outro rapaz musculoso.
-Quem é aquele que está com ela, Seu Romeu? – Pergunta Euclides ao porteiro.
-Não sei... Estão ali já faz uns dez minutos... E não parecem muito amigáveis não.


Euclides fica ali, a observá-los. Não dava para ouvir muito bem o que eles diziam, pois o tom vocálico de Lia era moderado. Ela odiava escândalos.
-Adalberto, eu já disse, me deixa subir para o meu trabalho. Não gosto de escândalo, de discussão em locais públicos. Você sabe disso.
-Eu não vim aqui pra discutir, Lia. Eu só queria te ver, te abraçar...
-Por favor... Nós terminamos, nós, nós... Não temos mais nada.
-Você ainda me ama, eu sinto isso.
-Sente! Ah, sente! Você não sabe o que é sentimento.
-Ao contrário do que você pensa, eu sei muito bem. Eu sinto, muito vivo dentro de mim, o amor. Não consigo pensar em mais ninguém. Só você. Volta pra mim.
-Olha, depois conversamos isso, agora preciso ir...
Lia ameaçou acionar o elevador. Adalberto segura em seu braço e lhe rouba um beijo na boca.
Euclides estremece ao presenciar aquela cena.
-Ih... Pelo visto os pombinhos se entenderam. – Sorri o porteiro.
Lia empurra Adalberto após trinta segundos de um ardente beijo, lhe desferindo um leve tapa na face esquerda.
-Você foi longe demais! – Grita, desta vez.
Ela força a passagem. Aciona o elevador, e logo entra.
-Nunca mais apareça na minha frente. – Ordena ela, já no interior do elevador.
Adalberto, estático, a olha partir. Ela sobe. Ele, com um sorriso malicioso, passa a mão suavemente sobre os lábios e a coloca no bolso da calça, como quem pega o beijo e guarda, para não mais perdê-lo.
Ele sai do prédio, eufórico, sem nem reparar em Euclides.
-Quem não gostaria de beijar aquela moça, han? – Brinca o simpático porteiro.
Euclides não lhe dá ouvidos, e sobe.
Chegando na redação, ele logo é abordado por Haroldo.
-Bom dia, Euclides. – Disse o editor, assombroso. – Chegando mais cedo?
-Sim, sim... Eu não tinha nada a fazer, resolvi vir mais cedo para ajudar. O que houve, parece estranho.
-Bem... Não tenho boas notícias, rapaz. Não quer se sentar?
-Não, não, estou bem assim. Agüento o tranco. Conte. Já sei. Vai me dispensar do novo cargo. Não gostou do que escrevi.
-Não, não... Nada a ver com trabalho. Sua mãe ligou para cá. Ela tentou desesperadamente te ligar ontem e hoje, mas não conseguiu.
-Meu celular está descarregado. Dormi fora. O que aconteceu? – Indagou, fingindo desespero.
Haroldo hesitou, pensando na melhor maneira para noticiar aquele falecimento. Detestava esses tipos de situação, no entanto, costumava ser direto.
-Parece que a sua avó sofreu um acidente. Caiu da escada.
-E?? Ela está bem, em que hospital ela está?
Ele vacila, e diz de uma só vez:
-Ela está morta.


Euclides finge uma vertigem. Haroldo segura em seu braço, e pede que tragam um copo d’água.
De longe, Julia Medeiros observa a tudo, tomando uma xícara de café. Ela não se comove nem um pouco.
-Quanta encenação. E quanta sorte ele tem. Estava preste a ser demitido. E agora...
Sentado em uma cadeira, dentre a multidão, Euclides avista Julia de longe a observá-lo friamente, como uma águia mirando sua presa, preste a atacá-la. Os olhares se cruzam... Se fixam... “Preciso dar um jeito nessa mulher”, ele pensa... “Ele precisa ser desmascarado o quanto antes...”, ela pensa.
O olhar epilético. O olhar arguto. Um confronto.




CONTINUA NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA...


domingo, 20 de setembro de 2009

Língua


Nem o português lírico de Camões,
Nem o irônico de Machado.
O alemão filosófico de Nietzsche,
não me agrada como no passado.
Nem o francês poético de Baudelaire,
É capaz de me comover.


Do inglês apaixonado de Shakespeare,
Nem um verso ando a querer.
E o italiano divino de Alighieri,
Não me encanta mais.
Dispenso até o grego de Homero
Com licença! Não os quero!
Tento jogar minhas tranças
Do topo desta Torre de Babel.
Os livros, outrora devorados,
Agora meros pesos de papel.
O vazio que me habita,
Só tua presença é capaz de preencher.
Não há léxico que comporte
As reticências em meu ser...
Não me servem tais idiomas,
Se não consigo me fazer entender.
Essas línguas não me interessam,
Quero tua língua aprender.
Que me perdoem as mentes brilhantes.
Não é desprezo, nem desdém.
Só um apelo atônito,
Afônico de alguém
Que quer outro idioma provar,
Idioma este: teu paladar.
Salgado
Doce
Azedo
Amargo.
Papila,
Saliva,
Palato.


sábado, 19 de setembro de 2009

Minhas Mãos


Queria que minhas mãos novamente te afagassem,

Queria que minhas mãos te libertassem da dor,


Queria que minhas mãos na mais linda mágica,

Encantassem tua vida.
Queria ter o poder de com minhas mãos,

Fazer o tempo parar,

Para assim poder contemplar o mais lindo mar,

Respirar devagar o mais puro ar,

Vislumbrar o mais lindo jardim, com as borboletas a voar...

Queria que com minhas mãos eu pudesse dar a vida

àqueles que vivem simbolicamente,

Queria que com minhas mãos eu pudesse trazer paz

Àqueles que vivem em guerra

Queria que com as minhas mãos eu pudesse aquecer àqueles que sentem frio.

Quero hoje, mais do que nuca, com as minhas próprias mãos, tornar a minha vida melhor e a dos que vivem ao meu redor...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Sugestão de Leitura: O Aleph


Para os amigos que gostam de se aventurar em novas possibilidades...


Um pouco de Realismo Mágico

O Realismo mágico se desenvolveu nas décadas de 60 e 70 e a partir das visões da cultura e da tecnologia que conviviam na América Latina,também apareceu como uma forma de reação as ditaduras locais.O Realismo mágico mostra o irreal ou o estranho como algo cotidiano e comum e isso torna este tipo de leitura fascinante.



Hoje,venho sugerir a leitura do conto o Aleph, do Grande escritor argentino Jorge Luis Borges.

Fazendo a leitura do conto “O Aleph” de Borges, podemos perceber que o autor nos apresenta novas possibilidades de leituras do mundo, em um universo aberto a pluralidade de significados, a simultaneidade de possibilidades, tudo isso em uma narrativa aparentemente tradicional que nos leva a experimentar uma nova realidade.

Borges usando de uma estética simples coloca o surreal, o improvável de uma forma natural, partindo de um cotidiano, esse sobrenatural se apresenta causando um estranhamento no leitor, que logo depois de um primeiro impacto é envolvido pela história tão bem contada e começa a se dar a oportunidade de experimentar uma temporalidade paralela, começa a acreditar que aquilo que se está lendo é a realidade, aconteceu ou está acontecendo naquele determinado momento, para o autor a temporalidade se dá de forma cíclica e não linear fazendo com que o passado se confunda com o presente passando a idéia de atualidade, essa impressão faz com o leitor mergulhe na leitura e se desprenda de preconceitos e se deixe levar pelo novo, pelo maravilhoso,pelo fantástico.


Boa Leitura!



quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Souza e cruz? Salva e luz.


Estou em uma fase saudosista... e confesso que sinto um "lack" de inspiração. Por isso, vou postar mais um texto dos anos 1990. Escolhi este, pois ele representa uma fase de auto-afirmação e descobertas .


Eu era fumante desde os 15 anos. Comecei a fumar informalmente com colegas no colégio, movida pela curiosidade. Fumava para fazer charme e porque sentia um certo tesão pelo cheiro do cigarro também. É verdade! O cigarro me atraía profundamente pelo cheiro. Fumei por quinze anos ininterruptos. Depois, já mais consciente, mais velha e dominada pelas campanhas antitabagistas, resolvi que queria parar. Meu fôlego já não era o mesmo, eu sempre tive o espírito dinâmico, atleta... gosto de caminhar, pedalar, dançar , patinar....cigarro não combina com nada disso,não é? E para completar, meu namorado odiava cigarros e me vi tendo que redobrar minha vontade de eliminá-lo da minha vida. Eu tentei parar de fumar algumas vezes.... e confesso também que depois da segunda vez eu não parei definitivamente, por um apego ao hábito e por acomodação. Quando aos 35 anos, decidi num certo dia, que não queria mais fumar, com uma certeza e uma clareza quase divinais, não senti nenhum problema em fazê-lo. Nunca mais senti vontade de colocar um cigarro na minha boca. Nem quando eu bebo café, termino as refeições, em volta de fumantes, quando estou em alguma balada ou festa que chamam pela dupla bebida/cigarro...NADA!
Muito pelo contrário, eu peguei verdadeira ojeriza por cigarro. Eu sinto tanto nojo, que quase rompi meu relacionamento com o pai do meu filho, pois só de chegar perto dele (fumante inveterado), com cheiro de cigarro da ponta do sapato ao último fio de cabelo, eu me sentia enjoada, querendo vomitar, como se estivesse grávida.
Agora ele está passando por um problema severo de apnéa, que o cigarro só veio ajudar a aumentar e por imposição médica e forçado pela vontade de viver, parou na marra. Eu, Davi e os pulmões dele, agradecemos.
Isso tudo para dizer, que o cigarro é uma droga e que o meu texto não é uma apologia a ele. Como disse, ele foi um coadjuvante na minha história e serve para me fazer entender, que quando estamos dispostos a mudar qualquer coisa em nossa vida, por mais difícil que ela possa parecer, temos que ter força de vontade, acreditar e impôr nossa vontade, como única verdade que temos que seguir de toda alma e coração. Isso pra mim é sentir Deus. Quando nos transformamos em protagonistas e superheróis de nossa própria vida, sem nos deixar abater pelos obstáculos e pelas vozes que querem nos puxar para um abismo de falta de coragem e de fé. Boa leitura a todos.



O cinzeiro está cheio.
Cheio de cinzas que carregam em sua composição
Todas as ansiedades
de um peito mal resolvido
e cheio de dor.
Olho para ele, que parece zombar de mim
de minhas neuroses radicais.
As guimbas tortas, amassadas
são representações concretas
de minha imagem patética.
Fumar é careta!
E a modelo que come um Big Bob
parece tão linda
com todo aquele veneno químico
que ingere tão charmosa!
Meu cigarro perturba com sua fumaça
o ar do meu irmão.
Mas o seu bafo de bebida no ônibus
só incomoda minha vontade de chegar
mais rápido ao destino final.
Composição Souza Cruz.
O Souza pode ser qualquer um.
Mas a cruz carregam todos, querendo ou não.
Por isso, não deixo de engolir e soltar fumaça.
Só respeito no momento, a minha dor, obrigada.
Quero arrebentar meus pulmões contagiados,
congestionados e absorvedores passivos
de outros venenos sociais que me atingem.
Não posso ter o prazer de soltar na cara dos outros
fumaça de automóvel.
Não tenho dinheiro.
Portanto, me deixem a vontade
para me poluir do jeito que quero e posso.
Os incomodados que se mudem.
O cinzeiro está cheio
E vai continuar cheio
por muito tempo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O homem que queria ser outro - Parte 4 - Revelação

Olá amigos, estamos na parte 4 desta história que vem atraindo muita curiosidade. Fico feliz por isso, e espero, a cada semana, poder recompensar a todos com novas surpresas. Abraços a todos, e boa leitura!


As pessoas iam, aos poucos, deixando o cemitério. Exceto Lia Neide, com seu vestido negro. Ela ainda segurava uma rosa vermelha. Os olhos lagrimejantes miravam um horizonte perdido. Sua vida estava cada vez mais fragmentada. Seu coração, apenas batia. Mas já não batia por nada, nem por ninguém. Estava oco, vazio; já não era mais aquele coração que parecia sorrir em seus desenhos pueris, na infância que lhe reservava boas lembranças. Agora era incolor, sem aquele vermelho vivo que a tornava viva. Agora, vermelhas eram somente as pétalas daquela rosa em sua mão. Rosa esta que ela agora daria um destino.


Caminhou até túmulo daquela família, onde fora enterrado o corpo do homem que ela, na verdade, amava... E lançou a rosa ao lado da cruz de madeira ali fincada, na terra úmida, revolvida. Ela secou as lágrimas, e disse:
-Adeus, A...
-Lia! – Chamou sua mãe, Dona Beatriz.
Lia olhou para trás. Em seguida, relanceou uma última vez o túmulo dele. Calada, ela se benzeu, e foi ao encontro de sua mãe, antes que a tristeza abatesse seu corpo por completo e, já sem resistência, ela ali fosse enterrada também.

Três dias atrás...

Ariano é acordado por sua mãe, que bulia levemente o seu ombro. Ela segurava o celular.
-Ariano, é a sua chefe. Ela insiste em falar com você.
-Ah sim... Obrigado, mãe. – Respondeu ele, ainda anestesiado pelo sono.Ele apanha o celular.
-Julia?
-Oi, meu querido. Desculpa eu incomodar você. Como está?
-Estou bem. O médico pediu que eu aguardasse aqui os resultados dos exames, por precaução. O que uma queda da escada não faz a uma pessoa... – Resmunga.
-Os resultados serão os melhores, tenha fé nisso. O Euclides está aqui, ao meu lado, juntamente com o Haroldo. Estão mandando um abraço.
- O Euclides não está chateado comigo?...
- Por que estaria?-Por nada... Esquece.
- O motivo da minha ligação tem a ver com ele. Amanhã você não terá condições de publicar sua crônica. Então... O Haroldo deu a idéia de publicar uma crônica do Euclides em seu nome.
- Ora, mas... Como assim? Por que uma crônica do Euclides?
- Ele pediu que trocassem seu setor de trabalho...
- E por que publicar em meu nome? O texto não é meu!
- Eu sei, mas é isso mesmo que estou reivindicando aqui por você. Por isso decidi ligar, e te comunicar. Você tem o direito de autorizar ou não.
- Eu não vejo motivo para publicar em meu nome. Não aceito isso.
Julia cobre o fone com a mão e anuncia:
- Ele não aceita.
Inconformado, Haroldo pede o fone.
- Fale com calma com ele, ok? O garoto está hospitalizado. – Recomendou Julia.
Ela passa o fone para o editor.
- Como vai, Ariano? Aqui quem fala é o Haroldo.
- Olá, senhor. Estou bem.
- Por que não aceita a proposta? O que tem contra a escrita do seu amigo?
- Não tenho nada contra, quero deixar isso bem claro. Só que não vejo necessidade dessa farsa. Isso pode ser descoberto. Meus leitores são bastante atentos e conhecedores do meu estilo.
- Mas os estilos de vocês são bem semelhantes!
- Mas não são iguais, senhor. Eu sugiro o seguinte: publiquem a razão da minha ausência, e, como provavelmente já pretende lançar o Euclides na área das crônicas literárias também, aproveite para anunciar a estréia dele na próxima semana.-Nossa, realmente, é a melhor idéia! Como já sabia que eu ia lançá-lo nesse setor?
- O Euclides conseguiu o que queria... Ele é bastante adepto a mudanças, sabe.
Haroldo fez que não entendeu, e foi logo cortando este assunto.
-Ok, então está confirmado! Amanhã Euclides assumirá seu lugar, só amanhã. Publicarei que você passou por alguns problemas de saúde esta semana, mas nada grave, e que voltará na próxima semana. Desejo melhoras a você, rapaz. Obrigado pela idéia.
- Por nada. Eu é que agradeço.
-Passe bem.

Haroldo desligou.
-Tudo certo. Você terá seu nome publicado, Euclides. Saiba que é um homem de coragem. Há dois anos Ariano publica seus textos conosco, initerruptamente, às terças-feiras. Substituí-lo requer bastante cuidado e talento, o que você também tem de sobra, não?
Euclides, um pouco desapontado pela mudança de planos, assente com a cabeça.
- Estou disposto a fazer sempre o meu melhor. Será mesmo esta crônica ou o senhor prefere outra em específico?
- Será esta! Ficou ótima. Pode se despedir do setor esportivo, rapaz.
O celular do editor começa a tocar.
- Meus amigos, agora preciso ir. Me dêem licença. – Justifica-se, ao olhar o visor do celular.
Haroldo sai apressado da sala, deixando Euclides e Julia a sós.
- Pronto, Euclides. Tenho que admitir... Você foi muito esperto.
- Não entendi. Sinto que há algo malicioso por trás desse elogio.
- Está sentindo coisas demais. Digo que foi esperto porque eu sei que, para convencer o nosso rigoroso editor em tão pouco tempo, ainda mais você, um novato no jornal... Olha, não é pra qualquer um.
- Eu não sou qualquer um, dona Julia. Agora com licença, preciso transferir meu material de trabalho para outra sala.
Euclides se retirou da sala, retumbante. Julia ficou com os olhos vidrados na porta por alguns segundos após sua saída, pensativa, batendo a caneta sobre a mesa.
- Aonde você quer chegar, Euclides... Aonde...?– Sibilou ela, perspicaz.

Já era noite quando Ariano recebia o parecer médico. Seus pais estavam ao seu lado, mais apreensivos do que ele.
- Nada foi encontrado em seu cérebro, a não ser uma pequena lesão, superficial, do lado esquerdo da sua cabeça.
- Mas doutor, essa pequena lesão é que provocou esse desmaio?– Perguntou o pai.
- Aparentemente sim. Novos desmaios podem acontecer. No entanto, podem ser evitados também, com um medicamento que vou receitá-lo. Outra coisa: evite fortes emoções, como aborrecimentos, ou festas exuberantes, excesso de ansiedade... Repouse, se mantenha tranqüilo. Em caso de novo desmaio, mantenham as pernas dele erguidas de vinte a trinta centímetros, verifiquem a pulsação dele, e molhem seus pulsos e seu pescoço.
- Essa lesão pode avançar para um estágio pior? – Indaga Ariano, preocupado.
- Não mentirei para você. Pode, caso você não siga minhas orientações médicas. Na pior das hipóteses, pode criar um coágulo, chamado de aneurisma cerebral. E se isso acontecer, você precisará ser operado às pressas.
- Minha Nossa Senhora!, exclamou a mãe.
- Fiquem calmos, é uma possibilidade remota. Vou prescrever os cuidados, e liberar o garoto. Aliás, Ariano... Sua mãe disse que escreve para um jornal, e me mostrou um texto seu. Você vai longe, rapaz.
- Obrigado, doutor. Espero mesmo que meu caminho seja longo, e não se finde por causa de uma queda da escada.
- Não! Ainda o verei autografando livros. E um dos livros será o meu, combinado?Ariano inclinou a cabeça, para esconder as lágrimas que nasciam.
- Combinado...

Amanheceu a terça-feira. A primeira terça-feira sem Ariano desde o seu ingresso no jornal. Euclides comprou o jornal, o folheou rapidamente, e alcançou a página seis. A página. Lá estava, na margem superior, a sua foto, e, ao lado o comunicado sobre a ausência de Ariano. Mais abaixo, o texto. A crônica de sua autoria. Euclides abriu um largo sorriso, arrepiado.
- Assumi o seu dia, Ariano. Abaixo a hegemonia! Viva a democracia!
E saiu pelo calçadão do Leblon gritando, com o jornal esvoaçando nas mãos. Parou na próxima banca de jornal e arrematou todos os jornais “Boca do povo”. Saiu distribuindo os jornais, de bar em bar. Distribuía aos transeuntes também. Chegou em casa extasiado, e foi direto para o computador. Anunciou a todos os seus amigos do Orkut sobre o texto publicado. Foi ao site do jornal, e acessou os comentários sobre seu texto. Lá, inventou uns nomes e registrou comentários do tipo: “Parabéns, você superou o Ariano Bezerra”, “Grande texto, os políticos estão mesmo afundando o nosso país”, “Você deveria assumir a terça-feira!”, “Parabéns, você se utiliza de palavras requintadas para expor suas idéias. Isso denota cultura.”Feito isso, recostou-se no respaldo da cadeira e suspirou, satisfeito. Desceu e encontrou sua avó sentada rente à janela da sala, observando a movimentação na rua, três andares abaixo.
- Vó, a senhora já leu o jornal de hoje?
-Ainda não. Mais tarde lerei.
Rodolfo, um homem esguio e de físico atlético, vem descendo a escada, vestido com sua roupa de malhação. Este é o pai de Euclides. Os cinqüenta anos de idade estão longe de condizerem com sua aparência física. Nos tempos vagos do trabalho, pratica exercícios.
- Caiu da cama, Euclides? Só dorme até tarde, o que aconteceu hoje? – Zombou o pai, sentando-se no sofá para ajeitar as meias.
- Eu acordo às nove todos os dias, ok? Isso é dormir até tarde?
Em seguida desce sua mãe, Amália. Uma mulher charmosa, de belos cabelos negros, voz arrastada e enjoada, daquelas típicas de madame da Zona Sul.
- Filho, estou indo dar uma caminhada no calçadão.
- Eu já comprei o jornal.
- E...?
- Disse para que vocês não o comprassem de novo, só isso.
- Ah, eu nem ia lembrar disso. – Disse o pai, enquanto alongava as pernas.
- Hoje eu escrevi, substitui o Ariano Bezerra.
- Ah, que pena. – Resmungou Dona Hilda, da janela.
Euclides, meio sem chão entre os três membros de sua família, reflete no que irá dizer a seguir.
- Talvez eu almoce fora hoje. – Disse, esperando que alguém questionasse a novidade.
- Vamos, querida, já estou atrasado pra academia.
- Vamos, não quero perder mais nem um minuto desse sol!E saíram. Euclides ficou parado, no centro da sala. Olhou para a avó, que não lhe retribuiu o olhar, e continuou mirando a rua. Viu-se só, como sempre. Resolveu subir para o seu quarto, e lá, tirar proveito da solidão, lendo os mesmos livros que Ariano tinha lido.

Eram três horas da tarde quando Euclides chegou no trabalho. Agora, acomodado em novo setor, a mesma sala de Ariano, ele se prostra diante de seu computador e acessa novamente o site do jornal. Ao verificar os comentários da sua crônica, se surpreende. Abaixo dos cinco que ele mesmo havia registrado sob pseudônimos, ele encontra mais de dez comentários, postado pelos fiéis leitores das crônicas de Ariano.
- O quê?? – Ele se assusta, arregalando os olhos epiléticos.Dentre os comentários, os que se destacavam eram: “a falta que Ariano faz...”, “falar de política é demasiado enjoativo para quem está interessado em bons textos culturais”, “Volta Ariano!!”, “O que aconteceu com Ariano Bezerra??”, “Esse cara só manda bem em crônicas esportivas. Falar de política com esse vocabulário rebuscado, ninguém merece. Volta, Ariano”, “Ler jornal com um dicionário do lado é pior que ler sinopse de novela repetida” “Em que hospital foi internado Ariano Bezerra? Por favor, dêem noticias!”...

Abismado com a má repercussão, Euclides começa a comentar, desvairadamente, em seu próprio nome. Rebate todas as críticas, com muito despeito. “Nenhum de vocês possui titulação para me dirigir críticas! Quem são vocês? Leitores de gibis e revistas pornográficas! Decerto que nunca leram os grandes clássicos da História, ou sequer estudaram a teoria literária. Não gostam de política porque não amam o próprio país! O Brasil é assolado pelos maus governos, e vocês não querem abrir os olhos para isso. Quem são vocês, senão brasileiros que não sabem ser brasileiros?”.A partir daí, inicia-se uma grande “guerra virtual”. Os leitores fanáticos de Ariano versus um Euclides dos Santos irado, sem limites. Euclides não aceitava uma crítica sequer. Todas eram rebatidas de bate-pronto. Os comentários iam sendo multiplicados. Euclides já recebia xingamentos – a baixaria estava instalada.Euclides não conseguia se conter, e seus dedos deslizavam ávidos sobre o teclado; vez em quando suas mãos cerradas socavam a mesa, seus olhos flamejavam de raiva. Sua testa suava, suas mãos já começavam a se umedecer. Até que uma pessoa se aproxima dele...

- Euclides.
Ele ignora o chamado.
- Euclides dos Santos, por favor.
Ele olha para o seu lado esquerdo. Era Julia, imponente, com um semblante sisudo.
- O que foi, hein? Não vê que estou ocupado? – Diz ele, grosseiramente.
- Ocupado! – Ela ri – Você está fazendo um vexame do tamanho do seu orgulho!Euclides cessa a digitação e se levanta, encarando Julia.
- O que disse?
- Pensa o quê da vida hein, rapaz? Eu acompanho hora a hora o site do jornal, principalmente os assuntos ligados à redação. A opinião pública é essencial para nossos projetos, para o jornal!
- A opinião pública! Você sabe o que significa a palavra “pública”? Povo, coletivo, massa. Gentalha. A massa é ignóbil. Nunca deve se seguir o que a massa diz. Eles dizem o que são manipulados a dizer. São uns alienados, não são titulados, não possuem opinião própria! É desse tipo de gente que vocês consideram as opiniões?
- Tipo de gente... Euclides, o que é você? Suponho que seja um homem de plena capacidade, de Q.I 190, com pós-doutorado em “saber tudo”, autoridade máxima da nossa nação. O que é você? Nós recebemos opiniões de todos os tipos, e de pessoas tituladas também, conforme você diz. Ou você acha que só os jornais renomados são lidos por esses especialistas?
- Definitivamente, eu acho.
- Então que o faz aqui, cara? – Alterou-se – Se quer ser criticado por um Luis Costa Lima da vida, vá escrever no jornal O Globo, no Diário Oficial, o cacete a quatro!
- A gente sempre começa por baixo.

A dor da raiva. Quando explode no peito, só tem um jeito pra curar: extravasar. Naquele instante, a vontade de Julia era acertar uma de direita no rostinho de anjo daquele sujeito emproado. E olha que ela se garantia; quando jovem, nocauteara mais de cinco meninos em brigas de rua.
- Moleque. Isso é o que é. Vergonha, essa discussão no site... O editor lerá tudo isso, o dono do jornal também. Sua reputação irá por água abaixo. Aliás, você chegou a formar alguma reputação? Tenho minhas dúvidas. Sabe o que eu acho que você quer? Alcançar um êxito impossível de ser alcançado por você. Um êxito como o de Ariano Bezerra. Ter o talento que ele tem. O problema, meu caro, é que talento não se adquire. Se nasce com ele. A estética do seu texto me dá náusea, e pelo visto não fui só eu quem reparei isso. Cheio de palavrinha bonita, arcaica... Que isso, estamos no século vinte e um! Você está cursando Jornalismo, e já devia saber como deve ser escrito um texto jornalístico. E isso o nosso amigo Ariano sabe de cor e salteado. Sabe de prática, de talento. A essência dos textos dele é inigualável. Se pensou que fosse igualar o sucesso dele, se deu mal, cara. Bateu com a cara no muro. Incrível como as pessoas se preocuparam mais com a saúde do Ariano do que com o seu texto inaugural, haha. Até hospitalizado ele ofusca você, Euclides.
- Você foi longe demais.
- Você foi. – Enfatizou Julia, apontando o dedo para Euclides – Você foi longe demais. Nem mesmo este jornaleco de quinta categoria merece um profissional como você. Estando aqui, você já foi longe demais. – Ironizou – Um profissional que se preze sabe acatar críticas, sabe lidar com isso. Sabe reconhecer suas limitações. Sabe se conformar em ser ele mesmo. Ontem você disse que não era qualquer um. Hoje, para mim, você é menos do que qualquer um. Você não é ninguém.
Euclides engole a seco, e seu olhar epilético é tão forte que deixa o corpo de Julia inteiramente hirto. Ela sente um vento gélido tocar sua pele, mas não perde a postura.
- Agora me dá licença. Já falei tudo o que tava entalado aqui, na minha garganta – Diz, apontando para o pescoço.
Julia se retira da sala de Euclides. Ele fica ali, remoendo todas aquelas palavras. Num acesso de raiva, ele derruba todas as folhas e objetos que estavam sobre a mesa de uma só vez.
-Desgraçada! Você me paga! – Grita, com um olhar demoníaco.
Euclides não demorou em se prontificar para deletar todos os seus comentários antes que eles fossem visto pelos seus superiores. Saiu furioso do jornal. Ficou vagando pela rua, sem rumo. Entrou num bar e pediu uma dose de uísque. Seria a primeira dose de sua vida. O máximo que bebia era champagne adocicado nas viradas de ano. E às vezes, um copo ou outro de cerveja. Mas, definitivamente, não era adepto ao álcool.
Debruçado no balcão, ele vira a dose de uma só vez. Sente uma forte ardência tomar conta do seu interior, como se todos os seus órgãos fritassem com aquela bebida. Sentiu-se nauseado, e foi para o banheiro rapidamente. Deparou-se com um banheiro nada higiênico. Foi direto para a privada – o cúmulo do asco, de tão fétida e suja - e lá vomitou tudo o que tinha no estômago. Uma dose foi o suficiente. Misturada ao ódio, ao despeito, e à realidade que insistia em lhe dizer que Julia estava certa, a dose de uísque foi mera coadjuvante. Seu orgulho foi ferido, sangrava. Não podia dar o braço a torcer! Mas os pensamentos latejavam: “A essência dos textos dele é inigualável. Se pensou que fosse igualar o sucesso dele, seu deu mal...” “Talento não se adquire. Se nasce com ele.”Euclides, ainda agachado rente à privada, com a boca e as narinas sujas com resquícios de vomito, começa a bater a cabeça contra a parede. Até que na quarta vez, ele desmaia, ali dentro daquele cubículo.

No jornal, Julia procura saber se Euclides ainda estava presente.
- Não senhora. Eu o vi sair bem esquisito daqui. – Informou uma jornalista.-Obrigada.
Julia se dirigiu até o setor esportivo. Lá, ela chama Cláudio, um dos repórteres que cobriam as partidas de futebol.
- Claudinho, querido, preciso saber de uma coisa. Você tem um minuto pra mim?
- Tenho dez, Julia. – Sorri.Os dois se afastam um pouco do alvoroço.
- Em que posso te ajudar?
- O Euclides. Ele deixou o setor esportivo ontem, você soube?
- Claro. Ontem ele veio aqui e avisou a todos sobre sua mudança. Disse que foi solicitado pelo editor-chefe, felicitamos ele, enfim...
- Ele disse isso?-Com certeza. Mas há algo de errado, Julia?
- Ele pediu transferência. Não foi solicitado conforme disse a vocês. Mentiroso. Alguma vez vocês tiveram algum tipo de desentendimento com ele aqui?
- Nunca! – Sorriu – Ele era até carismático, contava umas piadas sem graça que nos fazia rir. Apesar do pouco tempo aqui, o Euclides deixou saudade.
- Minha nossa... – Boquiaberta.
- O que, Julia?
- Nada, nada, esquece. Eu pensei que ele tivesse arrumado confusão com vocês, só isso. Me enganei, pelo visto... – Disfarçou.
- Não, ele nunca arrumou problema.
- Cláudio, te agradeço muito. – Agradeceu, segurando nas mãos do repórter – Agora preciso ir avisar uma coisa ao editor. Fica na paz.
- Que nada, Julia. Quando precisar...
Julia sai a passos sôfregos até a sala de Haroldo. Ela bate na porta.
- Entre! – Autorizou Haroldo.
Ela abre, e vai logo dizendo:
- Precisamos conversar. É sobre o Euclides.

Já eram seis e meia da noite quando Euclides chega em sua casa. Meio desnorteado, ele cruza a sala e vê, sobre a mesa de centro, o jornal aberto, na página seis. Ele caminha até a mesa, pega o jornal e o rasga em vários pedaços. Nesse momento, seus pais estão descendo a escada. Estão vestidos com roupas de gala; ele com um smoke invejável, e ela, com um vestido azul um pouco decotado.
- Filho? Chegou agora em casa?
- Parece que sim, não acha? – Responde ele, com os nervos a flor da pele – E vocês, para onde vão desse jeito?
- Hoje é nosso jantar de aniversario de casamento. Não vai nos parabenizar? – Diz Amália, a um sorriso meigo e um requebrado repleto de classe, já defronte o filho.
Euclides estava em convulsão. Seu olhar epilético piscava a todo instante, como que se fosse um tique nervoso. Seu corpo suava por inteiro. Ele olhou para a mãe e disse:
- Parabenizar? Quantas vezes algum de vocês me deram parabéns pelos meus textos no jornal, hein?
Amália e Rodolfo, que ajeitava seu smoke, se entreolham.
- O que foi isso Euclides? Que frescura é essa agora? – Bradou o pai.
- Frescura? Frescura eu vejo estampada na cara mal lavada de vocês dois!
Do alto da escada, Dona Hilda observava a tudo.
- Enlouqueceu, é?
- Olhe os olhos dele, amor! Ele não está normal! – Assustou-se Amália.
- São os meus olhos de sempre, mamãe! Você que nunca parou para observá-los. Eu nunca sou notado nessa casa. Família de merda! Nunca ninguém se importa comigo aqui!
- Não diga isso! – Berrou Amália, contristada – Está sendo injusto! Nós sempre te demos tudo! Você, um homem com 25 anos na cara, que já podia ter sua casa própria, mas não! Se não nos importamos com você, porque ainda vive sob nossas asas? Ingrato!
- Vivo aqui porque quando me ofereceram um apartamento, senti que faziam isso para se livrarem de mim! Mas eu não dei esse gosto a vocês, jamais daria... A partir daí foi que eu percebi o quanto vocês me menosprezam. Tudo o que faço está horrível, está inferior ao padrão! Quantas vezes leram os meus textos, meus trabalhos da faculdade? ...
- Filho, você sabe que eu não gosto de ler nada sobre esporte...
- E eu odeio ler! – Complementou o pai.
- Vocês foram assistir minhas apresentações na faculdade? Meu pai faltou a minha própria formatura! Disse que me formei em Letras pra morrer de fome, e não foi me prestigiar por isso... Pensam que me esqueço desse dia?
- Eu estava viajando a trabalho...
- Mentira!! Eu sei de tudo, tudo! Vocês sempre o preferiram!
- Para com isso, Euclides! Basta! Vejo nos seus olhos uma outra pessoa. Não é você! – Exasperou Rodolfo, se aproximando de Euclides.
- Sou eu, sou eu! Me enxerguem ao menos uma vez na vida! Me ouçam!
- Está drogado, só pode...Amália leva as mãos a cabeça após esta conclusão.
- Euclides... Me diz a verdade: você fez uso de droga?
- Querem saber? A maior droga da minha vida é a minha família! – Define, lágrimas escorrendo dos olhos.
Euclides sobe para o seu quarto em disparada. Sua avó o vê entrar no quarto.
- Nossa, esse cara não consegue ver ninguém feliz! – Exclama Rodolfo.
- Estragou a nossa noite... – Lamentou Amália.-Não, não estragou nada! É isso que ele quer, Amália. Vamos para o nosso jantar, esqueça o Euclides. Venha.
Rodolfo pegou em sua mão e a conduziu até a porta. Eles se foram.

Julia estava ao volante quando ligou para a casa de Ariano. Quem atendeu foi Arlete.
- Como vai, dona Arlete? O Ariano está bem? Quais foram os resultados do exame?
- Sim, está. Os exames não detectaram nada de grave, graças a Deus.
- Eu até iria aí, mas estou meio sem tempo... Poderia chamá-lo para mim um instante? Preciso muito contar algo a ele.
- Me desculpe, mas... Ele adormeceu há pouco. Anda muito sonolento, começou a tomar um calmante hoje. Está em recuperação. O médico disse que ele não pode sofrer nenhum tipo de emoção forte. Precisa se manter tranqüilo, em repouso, por uma semana, ao menos.
- Ah sei... – Murmurou, em forma lamentosa – Nenhuma emoção forte...
- Por que, aconteceu alguma coisa?
- Não, imagina. Fico feliz pela saúde dele. E torcendo pra que ele volte logo pro jornal. Faz muita falta o seu menino.
- É, ele é especial mesmo. Não quer deixar recado?
- Infelizmente, é só com ele. Mas de qualquer forma, obrigada. Dê um beijo nele por mim.
- De nada, beijos.
Julia desligou e lançou o celular sobre o banco do carona. Em seguida, ela soca o volante.
-Droga! Pobre Ariano... Mas não vai demorar muito pra verdade vir à tona. O Euclides que se cuide.

Euclides estava enclausurado em seu quarto, ao som de uma ópera de Tchaickóvski no último volume, o Concerto número 1. Deitado na cama com o os olhos fitos no teto, ele não percebe a entrada de sua avó, no quarto. Sorrateira, vestindo seu vestido de cetim claro com adereços pretos, os cabelos arrumados em coque - ela se aproxima do aparelho de som, e abaixa o volume. Ele olha para ela, irritado.
- Tira a mão daí, velha enxerida!
- Veja lá como fala comigo, moço. Eu não sou sua mãe, muito menos o tonto do seu pai. Sei muito bem que não está drogado. Sei muito bem que é você.
- Quem sou eu? Ah, a senhora então sabe quem eu sou? Por favor, me diga quem sou, porque nem eu sei.
Euclides se senta na cama.
- Você sempre tentando ser o outro... Euclides, Euclides... Até quando? Até quando essa busca fatigável?
Euclides se sente ofendido, e se levanta da cama. Caminha até a velha, com uma expressão interrogativa.
- O que está dizendo, vó?
- Desde criança você não se contenta com o que tem e com suas aptidões.
- Tomou o seu remédio, vó? Porque não parece.
- Estou muito lúcida, rapaz! Sou a mais lúcida desta casa! Eu venho te observando, desde a infância! Te conheço como a palma de minha mão. Sei do que é capaz.
- Do que sou capaz?
- De tudo. – Ela diz, cravando um olhar tenebroso no olhar epilético do neto.
- O que está insinuando?
- Sempre desconfiado... Como quem esconde mil segredos dentro de si...
- A senhora ainda tem coragem de ficar do lado deles? Não vê o que passo aqui!
- Não estou do lado de ninguém, caia na real. Estou do lado dos fatos. Esta não é a família dos sonhos, Euclides, mas é a sua família. É a família que você plantou.
- Eu não escolhi nascer nesse inferno.
- O inferno nasceu com a morte do seu irmão.
A lembrança da morte de Ernando... O jovem Ernando. Aquela recordação fechada, quase impenetrável na memória dos membros daquela família. Em Euclides, era quase insuportável a dor daquela lembrança. Era a facada mais profunda que ele poderia receber.
Euclides oscilou pelo quarto, atordoado.
- O que foi, Euclides? O remorso ainda o persegue?
- Cale essa boca!! – Berrou ele, voltando a encarar a avó, agora muito furioso.
- Eu não tenho medo desses seus olhos. Através deles, eu enxergo tudo. As trevas que há em você.
- Sai do meu quarto! Agora!!! Sai, é uma ordem!!
Dona Hilda ainda deixa escapar um risinho cínico, e deixa o quarto, na lentidão de seus passos longevos. Euclides, mais atormentado do que nunca, resolve ir tirar mais uma satisfação com a velha. Ela, que já havia alcançado o topo da escadaria, se vira para ouvir o que Euclides tinha a dizer. Ele chega com mansidão.
- Vó, me explica isso... O que a senhora sabe?
- Eu sei de tudo.
- Tudo, mas tudo o que?
- Chega de se fazer de santo! Sei que você matou o seu irmão. Assassino... – Acusou, com uma voz venenosa.Euclides não contém as lágrimas.
- Eu não o matei. Ele...
- Ele se afogou! Ah, coitadinho! E você presenciando tudo. Eu fui a primeira a chegar no local da tragédia... Meu neto, morto naquela maldita piscina, e você ali, perto, fingindo ter chegado ao mesmo tempo. Mentira! Vocês estavam juntos o tempo todo!
- Por que eu mataria o meu irmão?
- Porque ele era mais inteligente que você. Ele sabia montar nos cavalos da fazenda, você tinha medo. Ele conquistou a menina mais cobiçada do município, você invejava a beleza dele... Seu irmão sabia de um tudo, e você... Você sempre foi medroso, mais limitado. E obviamente, você via seu irmão ganhar os melhores elogios, as melhores recompensas, tudo de melhor. Afinal, ele era melhor que você.
- Você disse que ele sabia de tudo... Ele não sabia nadar. – Disse, arrefecido.
- Maldito seja você. Matou-o exatamente em seu ponto fraco. Por isso está passando por todo esse sofrimento, Euclides. Jamais irá se encontrar. Sua vida estará sempre no outro, pois todos são melhores do que você. Você nunca se dará por satisfeito. A inveja vai consumir mais rapidamente os seus dias. Irás morrer seco, sem brilho, sem nunca ter sido ninguém. Deus te marcou, Caim.
- Eu sou o melhor! Sempre fui! – Berrou, visceralmente - Maldita é a senhora... Velha estúpida. Nove anos depois e ainda chora a morte do netinho querido. Sempre soube que eu o matei... Por que nunca me entregou?
- Não tenho provas, mas sempre soube, aqui, dentro do meu coração. E também, imagine o desastre que eu causaria na família ao ter que revelar toda a verdade...
- Por isso sempre me tratou com indiferença. Nunca me deu a atenção que toda avó dá ao seu neto... E continuará assim, até a morte. Esse segredo, essa indiferença...
- Já basta esse cinismo! Pois agora eu mostrarei a todos quem você é, sabe porque? Porque percebo que em breve você fará uma nova vítima... Eu impedirei que isso aconteça.
- Você? Haha, uma velha de oitenta e dois anos nas costas? Olha que velhos morrem fácil, fácil. Ainda mais a senhora, que sofre de labirintite... Coitada. Vai que perde o equilíbrio numa situação dessas, perto da escada, e bummm... Vai-se embora.
- Sai de perto de mim, demônio! Vai morrer sem nunca ter se encontrado!
- Disse que sou capaz de tudo, não disse? Ou sou eu o velhote que não escuta direito? – Dizia, zombeteiro.
- Satanás!
- Acabo de me identificar com ele. Vou te livrar desse sofrimento, vozinha. A vida é dura... Será melhor para a senhora descansar nas nuvens de algodão. Não era essa a historinha que contava pra gente? Que quando se morre, se passeia em nuvens de algodão? Sabia que o Ernando desejou morrer só pra passear nas nuvens? Eu apenas realizei o sonho dele...Euclides começa a gargalhar, sem piedade. Dona Hilda, ao notar o ápice de sua loucura, decide descer a escadaria, apoiando-se no corrimão. Euclides a vê descer dois degraus e diz:
- Não tem escapatória, vó. Bom Voyage.Euclides desce um degrau, estica os braços e dá um forte empurrão nas costas corcundas de sua avó. Ela se agarra ao corrimão como quem se agarra ao último fiapo de vida. Ele tenta arrancar suas mãos frágeis do corrimão, mirando seus olhos desesperados, que clamavam pela vida, ainda que cansados pela idade avançada. Mas ele, sem nenhuma compaixão, arregala ainda mais aquele olhar epilético, e finalmente, solta suas mãos do corrimão.
- Ahhh!
Foi o último berro da velha. Ela rolou dez degraus. Do alto da escada, Euclides ficou a observá-la, lá embaixo, mortificada. Ele sentou-se no degrau, apoiou o queixo numa das mãos e analisou a situação por alguns instantes, com uma expressão naturalíssima. Resolveu descer a escada. Calmamente, passo a passo, ele alcança o corpo da avó. Se aproxima dela, e se agacha. Ele olha nos olhos dela, que por sua vez, estavam arregalados de horror. Pela boca entreaberta da velha ainda se sentia um resquício de ar se esvaindo. Euclides conferiu sua pulsação.
- Maldita. Bem que dizem, vaso ruim não quebra. Me desculpa, vó, mas a senhora precisa morrer agora. Quem mandou ficar me ameaçando? Não sabe, com toda sua experiência de vida, que um bicho acuado procura sempre o melhor meio para se defender? E geralmente, sua defesa... É o ataque.
Euclides ainda olhava nos olhos de Dona Hilda, que podia ouvi-lo, mas não tinha forças para falar nada. Chegou a sussurrar algo...-Sa...ta...nás...-O que vou fazer agora? – Indaga ele, se erguendo – Não posso assassiná-la com minhas mãos. Em todo caso, ela se estabaca da escada... Se eu asfixiá-la, a perícia pode descobrir... Vó, que tal mais uma aventura radical na escada, hã?Euclides passa por cima do corpo da avó, se inclina e segura em suas pernas, uma já fraturada. Ele começa a puxá-la de volta para o topo da escada. A subida é vagarosa, tortuosa; a cabeça da velha vem se debatendo a cada passagem de degrau. Com muita dificuldade ele consegue trazê-la consigo até quase o cume.
- Bem, agora preciso virá-la ao contrário... – Disse, ofegante.
Euclides move o corpo de sua avó, colocando-o frontalmente, em direção a descida da escada. Ele a levanta um pouco, segurando em suas costas, e a empurra, promovendo uma nova queda da velha. Ela cai de cabeça, fraturando o pescoço. Rola até quase o fim da escada. Ele, ainda fatigado pelo “trabalho”, desce e verifica os pulsos dela. Percebe em seguida o pescoço virado. Os olhos, ainda esbugalhados, como se ainda esbanjassem vida. Ele, incomodado com aquela visão, fecha os olhos da falecida.-Enfim, morta.

CONTINUA NA PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA...