sexta-feira, 31 de julho de 2009

Sempre é tempo de recomeçar!


Já não era a primeira nem a segunda vez que Paulo chegava em casa naquele estado, completamente bêbado, no meio da madrugada fazendo barulho e incomodando os vizinhos. Sua mulher já não agüentava mais aquele tormento, seu marido não se parecia em nada com aquele homem com quem ela casou havia mais de dez anos. Aquele homem jovem sonhador que queria logo ter filhos e mudar pra uma cidade do interior, construir um chalezinho com lareira e jardim de inverno.




A cada noite que Paulo chegava em casa naquela situação ela via seus sonhos de ser feliz se distanciando cada vez mais, já não encontrava mais desculpas para dar aos filhos que perguntavam toda noite pelo pai. "Por que que ele não ficava mais com eles? Porque não viam mais filmes juntos? Porque o papai não fazia mais pipoca com pedacinhos de bacon que eles tanto gostavam?", "O que houve com o papai?" Eram muitas perguntas e poucas respostas.

Paulo, no dia seguinte sempre acordava passando mal, seu estômago doía. Ele sempre foi fraco com bebidas e procurava se fazer de forte, não podia demonstrar que aquilo vinha lhe fazendo mal, mas ficava com vergonha e ia trabalhar antes que os filhos acordassem. Às vezes ficava dias neste ciclo, chegando tarde, saindo cedo, bebendo, se alimentando mal, sua aparência era de um homem de uns 45 anos, embora ainda tivesse com 35 anos.

Passava mais tempo com os “amigos” do que com sua família. Até que um dia o improvável aconteceu: Paulo foi demitido. Suas vendas estavam cada vez mais baixas e a empresa, também sofrendo com a crise, resolveu cortar custos diminuindo a equipe e como sempre o critério foi o desempenho. A notícia foi como um soco na boca do estômago. Paulo lembrou das dívidas que tinha, do cheque especial estourado, do carnê do carro, das compras do mês, do colégio das crianças e até da conta do bar. Sua vontade era sumir, correr para um lugar mais distante possível daquela vida que ele mesmo construiu para si. Mas, para onde correr?Quanto mais ele pensava em correr de si mesmo, mais sua consciência o perseguia, mais ele via o tempo perdido em bares, mais ele se via trabalhando desanimado no dia seguinte, mais ele reconhecia o quanto ele vinha trabalhando mal, achando que nunca iria ser mandado embora.

Mas chegou o dia de colher o que ele já vinha plantando há tempos, sua vida vinha em sua cabeça em flashes, como um filme. Seus filhos cada vez mais distantes, cada vez ele participava menos do crescimento e da vida daquelas crianças tão planejadas. Lembrou também de sua esposa, sempre fiel; muitas vezes ela a fez sofrer, chorar por tamanha inconseqüência. alegava que havia casado cedo demais e tinha de curtir um pouco a vida, mas agora via que estava perdendo tempo, que podia curtir a vida sim, mas de uma maneira mais saudável, mais feliz até. Neste momento Paulo chorou, chorou de doer a barriga. Sentou-se num meio fio e se sentiu totalmente sozinho naquela situação de tanto sofrimento. Não viu o tempo passar, já era noite e ele se sentiu sozinho. Os amigos do bar não vieram encontrá-lo quando souberam que ele tinha perdido o emprego. "Será que eram mesmo amigos dele ou do álcool?" Paulo pensava, pois se lembrava das noites de farra, de gastança e ao mesmo tempo se lembrava de seus filhos e sentiu vontade de ir pra casa, mas tinha vergonha, não sabia como dizer a sua companheira que fora demitido, que iam passar ainda mais sufoco para pagar as contas que já não andavam em dia. Tudo isso se passava naquela cabeça, quando ele já perto de casa e sem coragem de entrar escuta alguém lhe chamar:

-Paulo!
Ele olha para trás e reconhece Arthur, um colega de seu trabalho que não participava daquelas festinhas de happy hour, era também uma pessoa que tinha mulher e filhos e os preservava. Arthur sempre lhe aconselhava a não gastar tanto, a ir pra casa depois do trabalho, a voltar a estudar, pois Paulo trancara a faculdade alegando que tinha de pagar o colégio dos filhos, mas gastava mais nos bares e nas farras do que com o colégio. Paulo via naquele homem um bom exemplo de pai de família, de homem cumpridor dos seus deveres e naquele momento se alegrou de ver aquele amigo, pois precisava de alguém para desabafar, chorar. Seu amigo, ao saber de sua demissão, foi procurá-lo, pois sentia que Paulo em sua essência tinha um bom coração, só precisava abrir os olhos para sua realidade, precisava de alguém que lhe estendesse a mão. Arthur logo que viu Paulo entendeu que a “ficha” havia caído. Com aquele baque, Paulo sentiu o peso da responsabilidade de ser um pai, um chefe de família, perante a sociedade, perante a si mesmo e perante a Deus. Começou a conversar com Arthur, que o aconselhava, orientava o amigo, mostrando um caminho melhor a seguir.

Paulo viu naquele homem uma manifestação de um poder superior em sua vida, sentia que chegara ao fundo poço com a perda do emprego, mas também sentia que era o momento de se reerguer, reconquistar sua família, sua moral, dar valor a realmente quem tem valor e assim o fez. Foi para casa, conversou com sua esposa, viu filmes e brincou com seus filhos, como fazia em outros tempos. Se comprometeu que a partir daquele momento não beberia mais, se transformaria num novo homem, num melhor pai e melhor marido. No dia seguinte, Paulo saiu para procurar trabalho, mas já com uma indicação dada por seu amigo na noite anterior, foi para a entrevista pensando nas palavras de orientação e pensando que poderia sim colocá-las em prática. Muitas vezes é preciso sofrer para reconhecer que vida que estava levando não estava boa nem para ele, nem para sua família, tão querida e que nem nos momentos mais difíceis o abandonou.

Esta pequena história nos mostra que sempre é tempo de recomeçar, a cada nascer do Sol de um novo dia temos a oportunidade de renascermos para nossa própria vida, é preciso que estejamos “ligados”nas oportunidades que vêm, para que a gente possa ser mais feliz e ter uma vida mais tranqüila.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Recordações de uma insone - Uma releitura do conto "Missa do Galo", de Machado de Assis.


Mais uma noite que se esvaece lentamente, e junto das horas, as lembranças que nunca mais me deixaram sobre um Natal de há muito tempo atrás, quando eu era então uma balzaquiana casada, traída e entediada, mas ainda assim com o coração cheio de uma jovialidade reprimida, de uma paixão platônica e contida que naquela ocasião me foi possível manifestar ao meu objeto de desejo e afeto, o estudante Nogueira, hóspede em minha casa, aparentado do meu marido e que esperava na sala de visitas por seus amigos, para assistir pela primeira vez, a Missa do Galo, na côrte.

Sentia-me irrequieta em minha cama fria. A ausência de Menezes me aliviava. Casara-me sem amor, aos vinte e sete anos. Diziam que eu tinha sorte por conseguir um marido já velha. Mesmo assim, sentia-me humilhada por ter de suportar calada as traições, sabendo que era alvo dos comentários maldosos de todos os vizinhos e conhecidos, já que ele não fazia muita questão de ser discreto com suas saídas cada vez mais constantes. Eu, por minha vez, comportava-me com dignidade e uma fingida indiferença, me entregando a minha mais constante e calorosa companhia - os folhetins - que preenchiam o meu tempo ocioso e aplacavam a minha solidão.
No entanto, esta paisagem sem colorido ou ventos fortes que resumia a minha vida adquiriu novos tons e o perfume de flores recém abertas com a chegada do jovem à minha casa. Seu frescor juvenil, seus olhos límpidos, curiosos e tímidos; o cheiro de nozes que sua pele emanava quando saía do banho.... frutos da nogueira apreciados nas festas natalinas, madeira boa para os móveis, estava agora sendo cultivado no meu jardim. Nogueira...jamais esqueci o seu nome... e ele é quem estava no meu coração, naquela véspera de Natal sem alegria , me embalando os pensamentos na cama fria.

Resolvi descer para ter com ele. Àquela hora minha mãe e as criadas dormiam. Vesti um penhoar branco longo, as chinelas de alcova de cetim também brancos e de bicos finos, que me alongavam a silhueta e me deixavam mais altiva e feminina, e pus-me a descer os degraus da escada escorregando lentamente as pontas dos dedos sobre o corrimão de cedro lustrado. Quando terminei o último lance, percebi que um livro pendia de suas mãos agora inquietas, enquanto ele me observava sentado em um poltrona na sala de visitas, de frente para mim. Aproximei- devagar e suavemente e sentei-me no canapé ao seu lado. Estava lindo num terno de brocado novo. Presente dos seus pais, vindo de Mangaratiba. Os cabelos penteados para trás, negros e lustrosos acentuavam seu olhar adolescente sob a penumbra da luz do abajur. O silêncio era quebrado pelos ponteiros do relógio na parede, presente de casamento de um tio distante. Perguntou-me preocupado se havia perturbado meu sono fazendo barulho ou por causa da luz. Respondi-lhe que não, e logo emendei um assunto sobre a minha insônia. Descobrimos que a tínhamos em comum.

- Se perco o sono não consigo mais recobrá-lo e dormir, mas na verdade, sei que ainda é cedo. Não deveria ter-me deitado antes das vinte e uma horas. Talvez por ser Natal, sinto-me um pouco ansiosa, ou talvez, seja um traço da velhice que já começa a dar seus sinais.
-Quem? A senhora, velha? De jeito nenhum Dona Conceição.
Tal foi a veemência de sua afirmação que me senti corar e o sangue correr quente em minhas veias, deixando-me em brasa os pontos mais sensíveis do corpo, como agulhas que me espetassem sem intervalo ou interrupção; as pernas ficaram trêmulas e um nó estranho na boca do estômago se formou... uma manifestação involuntária de prazer inundou o meu corpo normalmente inanimado, mesmo aos toques mais ousados de meu marido. E o meu nome dito por seus lábios frescos como uma amora apetitosa pedindo para ser arrancada do pé e saboreada de olhos fechados e...

_ Dona Conceição, a senhora está bem? Pareceu-me por um instante estar nauseada e a ponto de desfalecer.
Ele tocou meu cotovelo com a urgência de quem quer ajudar um doente prestes a expirar. Ambos nos erguemos repentinamente passando para lados opostos do aposento. Meu Deus! Respiro fundo e tento voltar a mim enquanto ecoa sua voz no meu ouvido...Conceição, concepção, origem de tudo... esqueço do dona e penso cheia de culpas cristãs na mulher que ele nem imagina que o deseja, como uma criança espera com água na boca por um doce após o jantar.
Havia uma certa tensão no ar. Reparei que ele olhava para as minhas chinelas e não sabia ao certo onde colocar as mãos... No que será que pensava? Dei-me conta de que éramos quase da mesma altura, que seus ombros eram espadaúdos e que provavelmente envolveriam por completo o meu torso fino entre os seus braços. Olhava para o rosto de um menino e via o corpo viril de um homem pronto para amar. Assustei-me com a intensidade do meu próprio desejo... Até então, nunca imaginei ser capaz de sentir o que estava sentindo, e também não sabia como agir, o que fazer, o que dizer. Quebrei o silêncio mais uma vez.

- O que você está lendo?
Ele segurava o livro em uma das mãos, um dos dedos dentro da página onde parara quando cheguei - armadura de proteção.
- Estou lendo " Os Maias", do senhor Eça de Queirós. A senhora gosta de ler?
- Sim, muito. Também gosto de romances. Já leu algum do Dr. Macedo?
Começou a citar alguns livros - perguntou-me o que eu estava a ler.
-"A letra escarlate", do senhor Nathaniel Hawtorne. Foi traduzido recentemente para o português. Fala sobre um amor impossível que consegue vencer barreiras quase intransponíveis.
Disse isso com pesar e tristeza na alma, como se estivesse falando sobre a minha história, mas sem um final feliz. Olhou-me com admiração, respeito e uma certa insegurança da inexperiência. Resolvi naquele momento, senhora da situação novamente, sentar-me à mesa, e o convidei para que fizesse o mesmo apontando-lhe a cadeira defronte a minha. Ofereci-lhe um cálice de licor de jenipapo, ao que ele se predispôs a nos servir. Nossos cálices tocaram-se, assim como nossos dedos fechados em volta das hastes de cristal. Esse toque efêmero parece ter durado o choque de uma eternidade. Provamos do licor no mesmo instante, e enquanto o saboreava cerrei os olhos, e quando novamente os abri, flagrei-o analisando as linhas do meu pescoço, o balanço dos meus cabelos pesados e repentinamente me senti linda, como nunca fui. Senti em seus olhos a curiosidade e a chama de um desejo súbito e novo, de quem percebe o sexo oposto pela primeira vez. Senti-o estremecer por ser pego em um momento íntimo de enaltecimento visual - eu mesma já não conseguia mais disfarçar o que estava latente dentro e fora de mim. Ao mesmo tempo começaram a pesar-me os pés e senti-me incapaz, covarde e sem vontade de evitar todas aquelas sensações. Cabia somente a mim dar continuidade ou um ponto final àquela situação.
Pensei nas horas, na diferença de idade, no sono leve da minha mãe, no Menezes com a amante na cama, no amor adolescente que nunca vivi, na impossibilidade de ser quem eu não podia ser. Senti-me derrotada, culpada, ridícula, velha, insegura, reprimida em minha vontade de tocá-lo por ele ser tão jovem . O que fazer afinal? Respirei fundo novamente...respirar é viver ou simplesmente sobreviver. Disse-lhe de supetão que gostaria de ter sido uma rainha poderosa, como Cleópatra talvez; dona de um império e do seu próprio destino, com marcas de um orgulho soberano, do mesmo jeito que estava retratada no quadro da parede, o qual eu nunca gostei. Talvez este fosse o real motivo para eu não suportar olhar para ela. A sua imagem me lembrava a vida de convenções sociais que eu era obrigada a viver. Só agora me dava conta de que ela escolhera a sua própria trajetória, mesmo obrigada a viver restrita e prisioneira de certas convenções impostas a uma rainha.
Este comentário quebrou um pouco o clima entre nós. Trouxe-nos de volta a minha realidade de senhora casada e sua parente emprestada. Resolvi então dar um basta a nossa conversa com uma segunda confissão:

- Gostaria de ter sua idade novamente e estar com o senhor aqui, neste mesmo lugar.
Antes que ele pudesse se manifestar alguém gritou o seu nome lá fora. Ficamos mudos por intermináveis segundos. Seus olhos me fitavam indecisos, indagadores e quase incrédulos.
-Vá. A Missa do Galo o espera.
Levantamos juntos. Desta vez sem hesitar, toquei-lhe o rosto até o queixo com uma das mãos espalmadas. Virei de costas e me dirigi às escadas.
Antes de abrir a porta ele me fitou com um tênue sorriso no canto dos lábios. Fiquei parada esperando-o fechar a porta atrás de si. Terminei de subir, entrei no meu quarto, tirei as chinelas, o penhoar e deitei-me novamente.
Por incrível que pareça, minha cama estava quente, e pela primeira vez consegui dormir após perder o sono. Estava leve como uma pluma; sentia-me em paz e aliviada. E todas às vezes que me sinto insone, recordo-me desta noite e logo depois o sono me invade... é o que está acontecendo agora, mais uma vez.

FIM

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Sensibilidade


A coisa toda ficou feia quando ele sentou perto de Lúcia e disse: "O problema é que você chora demais." Aquilo foi o começo do fim. As palavras de Renato foram sua própria sentença.

- Que cara de pau sua, falar isso. Eu choro demais? E qual deveria ser a minha reação ao descobrir que meu noivo tem um caso com minha melhor amiga? Se bem que se essa é a melhor amiga, imagine a inimiga.
- Eu não queria te magoar. Nem a Bárbara queria. Mas nem precisa, você se magoa com tudo. Fizemos tudo da melhor forma possível, para que ninguém saísse mal dessa história.
- Fizeram tudo da melhor forma possível? Ah, vai pro inferno, Renato!
- Eu precisava de liberdade, você me sufocava com essa sua sensibilidade toda.
- Queria liberdade?
- É, homem precisa ter seu espaço, senão acontece alguma merda.
- Mas eu sempre deixei você fazer tudo o que queria, nunca fui de pegar no seu pé. De que liberdade você tá falando? Esperei dez anos por essa bosta de casamento.
- Ah, sei lá, Lúcia. Eu tava me sentindo aprisionado, que nem um pássaro na gaiola. Você me dava tudo o que eu queria, mas eu precisava voar, sacou?
- Voar? Vou me esforçar pra entender...

As lágrimas de Lúcia eram verdadeiras. Ela tremia só de lembrar as mensagens que viu no celular dele. Renato estava tranquilo, parecia já prever que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde.

- Por que você não terminou comigo e foi ficar com ela? Por que trair? E às vésperas do nosso casamento?
- Você está certa. Eu sou um covarde. Devia ter feito isso, mas não tive coragem, tive medo de você começar uma choradeira, exatamente como você está fazendo agora.
- Deixa pelo menos eu chorar, caramba!
- Eu detesto quando você chora, DETESTO!-esbravejou- Você chora por tudo. É um filme, é um livro, é uma exposição de arte, é uma notícia no jornal. Chora até assistindo comercial de tv. Ah, haja paciência!
- Eu sou sensível, dá licença? E naquele filme de Bergman você chorou também que eu vi.
- Aquele filme foi foda, não deu pra segurar. Mas foi só aquela vez; homem não chora, meu pai sempre disse. Mulher chora, mas você chora à toa.

Lúcia caminhou até a sacada do apartamento e ficou olhando para baixo, as pessoas pareciam formiguinhas lá embaixo; e os carros, flashes luminosos.

- Lúcia, eu não estou nada bem-disse Renato, se aproximando de onde ela estava.
- E eu estou ótima. O que você acha?
- Tô falando sério. Parece que o mundo caiu nas minhas costas. É muita pressão, é a Bárbara me enchendo pra assumir o lance da gente, é a empresa que descobriu umas paradas erradas que eu andei fazendo...
- Que paradas?-Lúcia interrompeu.
- Uns desvios que tive que fazer, tá dando uma merda danada, tô sob investigação...
- Desvio? Você roubou a empresa, Renato? E pra quê? Pra custear o casamento?
- Antes fosse pra isso, nem queira saber Lúcia, nem queira saber...
- Pra gastar com a vagabunda da Bárbara.
- Ela não é vagabunda, Lúcia. Porra, eu tô abrindo meu coração pra você, ninguém sabe disso.
- Eu quero que seu coração se foda, e a Bárbara e a empresa.

Renato mostrou um monte de documentos que comprovavam as tais falcatruas nas quais ele estava envolvido, além de inúmeras contas atrasadas. Ele entrou novamente na sala, deixou a papelada sobre a mesa, abriu uma gaveta, pegou algo e voltou para a sacada.

- Tá vendo essa arma, Lúcia?
- Tô. Vai me matar, seu desgraçado?
- Não. Comprei essa merda pra me matar. Mas sou um filho da puta tão covarde que não tive coragem de puxar o gatilho. Eu sou um merda, Lúcia. Você merece coisa melhor.
- Não diga... Sério? -ironizou Lúcia.
Mostrou também uma carta de despedida que havia escrito, onde explicava as razões para seu futuro suicídio. Deixou sobre a mesa a carta e guardou a arma na gaveta.

Com os braços apoiados no parapeito, Lúcia pensou nos longos dez anos que passou ao lado de Renato. Dos vinte aos trinta, viveu em função dele. Não teve filhos, porque Renato não queria, ele já tinha um. Não estudou Letras porque Renato dizia que Letras era curso de maluco e que professora ganhava pouco. Cursou Direito para agradar Renato. Pensou na infância difícil que passou, sofrendo abusos por parte do padastro, pensou na mãe que nunca lhe apoiara, pensou em todas as confissões que fez a Bárbara e no quanto havia confiado nela. As lágrimas de Lúcia eram grossas, salgadas e mornas e caiam daquela altura toda, uma após a outra, incessantemente. Pensou que talvez Renato estivesse certo, talvez ela precisasse tratar essa sensibilidade excessiva que tinha. Questionou se haveria mesmo uma possivel cura para a angústia que ela sentia naquele momento. Pensou, pensou, chorou, chorou.

Renato veio até ela novamente e disse:

- Desculpa. Desculpa por tudo.
Lúcia entrou na sala, sem dar conversa ao que ele dizia. Abriu a gaveta e pegou a arma. Apontou em direção à cabeça de Renato.

- O que você tá fazendo? Você quer mesmo me matar? -Perguntou ele
- Não. Você quer se matar. Você disse.
- Tá louca?
- Você disse que comprou essa arma pra isso, mas como é um cagão, filho da puta, não teve coragem de por fim à própria vida. Mas eu vou te ajudar, pela última vez.
- Lúcia, abaixa essa arma, vamos conversar. Não é assim que se resolve as coisas. Assim você não está me ajudando...
- Estou sim. Livro você desse monte de merdas que você andou fazendo e de quebra você nunca mais vai ter de me ver chorar.
- Se você atirar em mim, vai ser presa, vai acabar com a sua vida.
- Já disse que não quero te matar. Sobe no parapeito.
- Como é que é?
- Sobe!- Disse Lúcia, aproximando a arma do ouvido de Renato.
Renato tremeu feito vara verde e começou a chorar

- Não faz isso, Lúcia. Você me ama, eu sei.
- Para de chorar, porra! Homem não chora! Sobe agora nessa merda de parapeito!

Renato subiu, aos prantos, no parapeito. Lúcia mirava com a arma a cabeça de Renato. Do alto do décimo nono andar ele sentiu o vento lhe tocar fortemente o corpo, mas equilibrou-se. De olhos fechados ouviu Lúcia dizer:

- Aproveite os cinco segundos que terá agora, será sua única chance de voar.
Ao ouvir Lúcia engatilhar a arma, Renato pulou.

Lúcia entrou para a sala, guardou a arma novamente na gaveta, deitou no sofá, ajeitou as almofadas. Deitou para dormir, foi um dia intenso, ela estava cansada; logo, logo começariam os borburinhos dos vizinhos e da polícia e ela teria que, pela primeira vez, fingir que estava chorando.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Despedidas


Despedir-se de uma história não é como despedir-se de alguém. A gente se despede da pessoa, mas a história que com ela vivemos é dificil deixar para trás.

Nós nos desfazemos dos objetos, das roupas, das cartas, desejando que o nosso sentimento queime junto com a foto, mas essa história fica escrita em nós como uma escara.

Pode não haver mais amor, pode não haver mais ciumes, mas se há uma história que nos une a alguém, passam-se meses, anos sem que a gente consiga se desvincular da criatura que nos incomoda com uma unha por fazer...

A gente se despede dele, ou dela, mas como fazemos para nos despedir da festa de casamento com que tanto sonhamos, da casa que seria no meio do mato, ou dos filhos, que ganharam nome, mas nunca existiram fora dos nossos pensamentos, alguém sabe?

Ela pode nunca mais vê-lo fazendo palavras cruzadas, mas essa lembrança ainda estará lá. Ele pode nunca mais sentir o cheiro dos cabelos molhados dela, mas o perfume não sairá da sua memória...

O que fazer com a história que fica e a vida que segue? O que fazer om essa raiz que nos prende a um presente que não nos pertence, que não nos agrada e que nós não queremos?

Despedir-se de uma história é despedir-se de nós mesmos, dos planos que tivemos um dia, de uma vida que estava lá pronta para ser usada, de um sentimento que gostávamos de sentir e que já não o temos mais.

Pessoas melancólicas não se despedem nunca e torcem para que seu perfume continue lá.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O valor de uma vida


''-O maior presente vem de dentro da gente... E não das coisas materiais''.
Tenham uma boa leitura! Lohan L. Pignone.


“The Red Car, o carro do momento”
Os olhos pequenos de Zózimo refletiam no vidro polido daquela vitrine. O dizer do cartaz que indicava o produto não o interessava, afinal, ainda não havia mergulhado naquele mundo fantástico das letras. Apenas a imagem era capaz de lhe revolver todos os sentimentos infantis. Seus olhos brilhavam mais do que aquele vermelho escarlate do “carro do momento”. Brilhavam de pureza, desejo, sonho. Pois aquela senhora que caminha do outro lado da rua sonha com uma aposentadoria merecida e um lar cheio de netos.

A mulher balzaquiana que atravessa a rua sonha em engravidar do homem que ama e conseguir um emprego que a valorize como profissional. O jovem que passa apressadamente pela calçada sonha em passar no Vestibular e ser alguém no futuro. E aquela criança, seis anos vividos, diante da vitrine daquela luxuosa loja de bairro nobre, sonhava em ganhar de presente aquele lindo carro de controle remoto no Natal que se aproximava.
-Vem, filho.
De mão dadas ao filho, Maria intervém naquele instante sublime que Zózimo vivia. Zózimo não pronunciou uma palavra. Apenas não queria desgrudar os olhos daquele sonho tão distante. Apesar da idade, podia enxergar perfeitamente a necessidade do dia-a-dia de sua família. E sua família era sua mãe e ele.
Aquele amadurecimento precoce consumia a criança que era. Deixou-se ser levado pela mão calejada da mãe e, ainda com o pescoço virado para trás, viu sair da loja um sorridente menino com uma caixa nas mãos, onde nela havia a figura do “carro do momento”. Ao lado do menino, seu pai, também satisfeito pela felicidade que proporcionara ao filho com aquele presente.
Lá estavam dois sonhos distantes para o inocente Zózimo: “O carro do momento” e um pai.
Subiu o morro com sua mãe e ao perceberem a presença de PMs na área, logo entraram em seu casebre, fecharam as janelas, as cortinas, e silenciaram-se num canto, aguardando o início e o fim de mais uma batalha.
E naquela noite escura Zózimo chorou, baixinho, debaixo da cama que dormia com a mãe. Precisava ser criança ao menos uma vez no dia...
Maria pôde ouvir a tristeza que brotava do coração do pequeno e sentiu uma dor profunda no peito. Quando criança vivenciou as mesmas situações e um dia prometera a si mesmo nunca permitir que seu rebento sofresse tanto quanto ela. Mas o que fazer se para alguns desafortunados a vida insiste em mergulhar no abismo? O que fazer sem um pai para aquele filho? Como fazer sem um emprego fixo?
Não sabia como agir, mas sempre soube como reagir. Reagir aos encalços da vida, às bofetadas que ela lhe acertava à luz do sol. Lutaria esforçosamente assim que raiasse um novo dia. Estava determinada a proporcionar um sorriso radiante no filho, algo que lhe recompensasse todas aquelas lágrimas. Aquele Natal seria o mais feliz da vida dele.
E lá estava a negra Maria, iluminada pelo sol daquela manhã, repleta de esperança, pois do abismo surgiu um mundo. Beijou o rosto do filho e o entregou sob os cuidados da fiel vizinha. Seguiu ladeira abaixo, rumo a mais uma casa de classe média alta na Zona Sul. Completou meio-expediente de faxina e de lá tomou o ônibus para mais um endereço requintado. Lavou, passou e poliu. Sob os olhares exigentes da D. Susana, ela trabalhava, calada e incansavelmente.
Finalizou meio-expediente. Já anoitecia quando Maria voltava, relaxada de tanta exaustão em um banco desconfortável de ônibus, para o seu morro. Apanhou o filho, cheio de saudades. Comprou pão, leite e café. A quantia que sobrou foi guardada em uma gaveta.
Deitou a cabeça no travesseiro pensando no que faria no dia seguinte.
E lá estava Maria, mais um dia, cozinhando um simples almoço para ela e o filho. Saiu em busca da labuta. Ofereceu-se à D. Alice para lhe adiantar alguns remendos. D. Alice costurava as roupas dos moradores daquela comunidade. Maria fazia de tudo um pouco.
-Muito necessitada, Maria?
-Necessitada em realizar o sonho do meu filho.
Naquele dia economizou mais um bocado. Já era noite quando sua vizinha foi lhe avisar de um telefonema. Para a grata surpresa de Maria, D. Susana havia apreciado seu trabalho no dia anterior e resolveu contratá-la como sua empregada definitiva. Maria recebeu esta notícia com lágrima nos olhos. Receberia ao final de todo mês um salário mínimo e isso era o bastante para começar a alavancar sua vida.
Amanheceu um novo dia e Maria já estava preparada para inaugurar uma nova fase de sua vida, a qual ela punha muita fé.
D. Susana tratava-se de uma patroa rigorosa, perfeccionista. Seu bom senso no que dizia respeito a limpeza e higiene jamais desaprovariam os esmerados serviços de Maria.
Naquela tarde, D. Susana tecia um lindo par de sapatinhos azuis, sentada em sua confortável cadeira de balanço.
Maria limpava os vidros da janela de seu quarto, tornando-os cintilantes à luz do sol vespertino. A mesma luz iluminava o trabalho minucioso de D. Susana.
-Você tem filho? – Indagou intempestivamente a velha senhora, sem cessar a tarefa.
-Sim, tenho sim senhora. Um menino.
-Como se chama?
-Zózimo. – Respondeu com orgulho.
-Bonito nome o do seu filho.
-Ah, brigada... É o nome de meu falecido pai.
-Já o meu neto será chamado Lucas. Dois meses... Não vejo a hora de sua chegada a este mundo. Seu primeiro par de sapatos será este.
Maria sorriu.
-É ótimo sentir a presença de uma criança. – Continuou D. Susana – Ao olhar para ela nos sentimos mais velhos e, ao mesmo tempo, nos sentimos rejuvenescidos. Meu filho cresceu rápido demais. Não aproveitou muito os sapatinhos que teci para ele, há.
Maria gostava de ouvir os devaneios de D. Susana. Apesar de aparentar austeridade, era uma velhinha simpática.
-Maria, por favor, apanhe meu estojo de agulhas dentro da primeira gaveta da minha cômoda.
-Sim senhora.
Ao abrir a primeira gaveta, deparou-se com um lindo colar de pérolas em seu interior. Seus olhos encheram-se de luz, despertando e si um imenso desejo. Pensou em tocá-lo, mas logo desistiu daquela idéia. Como queria usá-lo em seu pescoço... Talvez fosse rainha até subir o morro, quando decerto seria assaltada. Um vago pensamento torturou-lhe o caráter naquele instante. Um instante. Roubá-lo significaria um esplêndido Natal para seu filho. Poderia comprar todo o estoque do “Red Car” e ainda prepararia um farto banquete, com todas as delícias que os ricos deleitavam-se nas novelas, as quais acompanhava pela sua tv de 14’polegadas.
-Eu me enganei, Maria. Está na segunda gaveta!
D. Susana a desligou do transe. Maria fechou rapidamente a gaveta e abriu a próxima. Lá estava o que procurava. Respirou fundo e seguiu com o dia, que se findava no horizonte, trazendo a noite estrelada, que era contemplada de uma janela apodrecida por Zózimo.
-Vem dormir, Zózimo! – Ordenou Maria, do quarto.
Zózimo imaginava estradas feitas de estrelas. Estradas por onde percorreria o trenó do Papai-Noel. Tentava compreender o porque dele nunca ter visitado sua humilde casa, assim como a de muitas outras crianças daquela comunidade.
Neste instante, cruza o céu uma rajada de luz, acompanhada de um estrondo.
-Zózimo!! – Berrou Maria, desesperada.
Ela pula da cama e corre para apanhar o filho.
-Eu já disse pra não espiar da janela essa hora, Zózimo! Não vai me obedecer?
Zózimo permaneceu mudo, inclinando a cabeça em sinal de obediência. Foi levado para o quarto junto da mãe, onde repousaria seu corpo e sua cabecinha cheia de porquês. Antes de pegar no sono profundo, deduziu que talvez fosse perigoso atravessar as estradas do céu de uma favela. O Papai-Noel não podia ser achado por uma bala perdida...
Ao estar coando o café daquela manhã, Maria foi surpreendida por Zózimo, que a perguntou:
-Este ano o Papai-Noel vem me visitar, mãe?
Maria sentiu aquela ingênua pergunta tocar seu coração. Aproximou-se dele, afagou-lhe os cabelos e respondeu:
-Vai, filho. Pode confiar na mãe, viu?
Zózimo sorriu. Maria, quando criança, sempre aguardou a vinda do Papai-Noel. Escrevia-lhe cartas e mais cartas, e, no máximo, o que recebia era uma boneca de pano ou uma bola de plástico. Sua esperança foi transformando-se em ódio. Já não podia mais ouvir falarem em Papai-Noel, pois aquele bom velhinho era um homem injusto. Tantas crianças sendo agraciadas com bicicletas, patins, lindas roupas... Então, mais tarde, o ódio transformou-se em resignação.
Não queria que Zózimo a odiasse assim como ela odiou seus pais, mesmo que na inocência. Precisava, a qualquer custo, tornar aquela lenda uma realidade.
Chegou na casa de D. Susana, disposta para mais um dia de luta.
-Está demitida.
Aquela gélida recepção de D.Susana foi um baque. Maria sentiu uma passageira vertigem.
-Demitida...
-Devia fazer pior, sua... Ladra. Devia denunciá-la a polícia!
Maria reagiu.
-Como pode me chamar de ladra? Eu não roubei nada!
-Cale-se, eu não admito que jure falsa inocência! Eu sei que foi você quem roubou o meu colar de pérolas.
-O seu colar? ...
-Não seja cínica. Ontem eu fiz aquilo propositalmente, pois queria que visse o colar naquela gaveta. Eu pude notar sua reação ao deparar-se com uma jóia mais valiosa que sua própria vida! Digamos que tenha sido um teste de honestidade, no qual você foi reprovada.
-Eu não roubei, eu não admito que a senhora me acuse assim!
-Quem foi então, hein? O vento o levou? Chega! Eu não quero mais que ponha os pés aqui dentro. Saiba que a livrarei de uma queixa. Decerto já repassou o material para as mãos de algum traficante do seu morro, não quero levar essa demanda adiante. Tinha que ser favelada. Tinha que ser...
D. Susana pausou, olhando uma lágrima de inocência ou arrependimento escorrer pela face de Maria.
-Preta. – Respondeu Maria, secando a lágrima.
-Não era isso que...
-Era sim! Eu sofro na pele esse preconceito desde que me conheço por gente. Então não me venha me dizer que não era!
-Maria, eu não tenho provas, portanto eu não a denunciarei.
-Eu também não vou te denunciar não, sabe por que? Porque eu não quero que seu neto precise ir até a cadeia pra conhecer a avó racista que ele tem. Agora dá licença, eu não passo nem mais um minuto aqui.
Maria é seguida por D. Susana até a porta.
-Espere! Se eu fosse racista, não confiaria em você para trabalhar em minha casa!
Maria, já fora de casa, responde:
-A senhora nunca confiou em mim.
No ônibus, Maria não conteve seu pranto. Chorou durante todo o trajeto. Como é duro viver. Ser bom não basta. Precisamos ser açoitados na vida, testados.
Subiu o morro sem dar conversa a ninguém, em pleno desânimo. Com os olhos vermelhos chegou em casa. Lá estava Zózimo, assistindo tv.
-A tia Julia disse que já voltava e não veio, mãe. – Disse o menino, referindo-se a vizinha.
Maria não pronunciou uma palavra. Adentrou em seu quarto e fechou a porta. Zózimo percebeu que havia algo errado. Foi ele bater à porta.
-Me deixa sozinha, filho. Me deixa...
-Mas você tá triste, mãe.
-A vida é triste. – Decretou ela.
Ficou sentada, com o olhar fito na parede descascada, durante meia-hora. Não derramou uma lágrima mais. Depois se dirigiu até a cômoda, abriu uma das gavetas e dela apanhou uma caixinha. Tornou a sentar-se na cama. Abriu a caixinha e pegou, com as mãos trêmulas, o que ela encerrava.
-Tudo é para o meu filho. – Murmurou, secamente.
Véspera de Natal. Maria levantou-se cedo. Lançou um olhar terno para o pequeno, que ainda dormia profundamente. Arrumou-se com modéstia, avisou a vizinha que estava de saída e desceu ladeira, admirando alguns enfeites natalinos que pendiam nas portas das casas e nos postes. Muitos também já estavam de pé naquela manhã nublada. Logo mais seria celebrada a grande festa. Era preciso preparar o banquete, arrumar a casa para os convidados, comprar os presentes que faltavam...
Maria tomou o ônibus, que por sinal não estava tão lotado como nos outros dias. Sentou-se ao lado de uma mulher acanhada, de pele clara e olhos fundos. O suor corria-lhe pela pele. Secou a testa com o dorso e suspirou.
-Sente-se bem, moça? Se quiser pode sentar aqui, pra janela... – Disse a mulher ao seu lado no assento.
Maria volveu-se para a mulher e respondeu que estava bem, grata pela sua preocupação.
-Este calor aumenta cada dia mais, não acha? Será esse aquecimento global? – Continuou a mulher, puxando assunto.
-Só pode...
-Ah... – Gemeu - Estou indo comprar o presente do meu filho. Esse mês foi tão puxado que nem tempo eu tive pra fazer compra de Natal, sabe. E como o dinheiro também é contado, só vai dar pra comprar uma lembrança pro meu menino. Mas o presente dele é obrigatório. Ele diz que é o ultimo brinquedo que deseja brincar antes de morrer... Mas ele não vai morrer. – Disse, com os olhos marejantes.
Maria foi surpreendida por aquele verbo tão temido: morrer.
-Mas morrer por causa de que?
-Agora ele está preso numa cama de hospital, descansando após uma dura sessão de quimioterapia. Ele tem câncer.
Maria sentiu uma pontada de dó em seu peito. Câncer... Que palavra medonha, feia. Criança não combinava com isso. Tudo relacionado à criança era colorido, alegre e bonito.
-Se eu pudesse compraria toda a cura do mundo para ele, mas... Pelo menos ele merece ter um Natal feliz.
-Se Deus quiser, e Ele quer, vocês terão um Natal milagroso.
-Deus... Onde estará Deus neste momento? – Blasfemou a sofredora mãe.
Silenciaram-se para um instante de reflexão.
-Prazer, meu nome é Rosana.
-Eu sou Maria.
As duas conversaram durante um bom tempo enquanto o ônibus seguia seu trajeto. Desceram juntas, no mesmo ponto. Juntas rumaram até uma loja de brinquedos. Alcançaram a calçada e, subitamente, viram-se envolvidas em uma balbúrdia. Sirene da polícia, gritaria. A perseguição estendia-se. O ladrão se viu cercado. Acuado, ele agarra uma pessoa pelo braço e a ameaça com uma arma na cabeça.
-Se chegarem perto, eu mato essa mulher! – Ameaçou o jovem e desorientado rapaz.
Rosana caiu em desespero nas mãos daquele rapaz. Era a refém. Maria afastou-se, tão chocada quanto a vítima. A policia aproximava-se devagar. Tentou negociar, em vão. O rapaz exigiu um carro, grana; o tempo passava, Rosana já não agüentava mais. O rapaz sussurrou no ouvido dela que a mataria. Instintivamente, pensando em seu filho, ela lhe acerta um golpe brusco, livrando-se de suas mãos. Ao correr em direção a policia, ela ouve um estalo que colocaria um ponto final na história de sua vida. O tiro atingiu-lhe em cheio, atravessando-lhe o tórax. Sem titubear, a policia disparou contra o rapaz, matando-o. Rosana caiu agonizante na calçada. Maria correu até ela, em meio a grande massa. Alguns policiais tentaram afastá-la de qualquer maneira, mas Maria ainda teve tempo de ouvi-la murmurar, com um tênue riso nos lábios, no ultimo suspiro:
-Agora sei onde está Deus...
Revirou os olhos. Maria foi arrancada dali, aos prantos. Disse ser a prima de Rosana e acompanhou o corpo até o IML. Entrou em contato com uma irmã da vitima através de um número de telefone encontrado na bolsa dela.
A tarde já caía quando Maria deixava o IML. Andava pelas ruas sem caminho traçado. Parou em frente a uma enorme loja de brinquedos, a qual ficaria aberta até as dezenove horas por conta do exorbitante movimento para compras. Arrasada, ela entra na loja e compra um dos brinquedos mais caros, pagando à vista. Em seguida, Maria segue para uma clínica na Zona Sul; uma a qual Rosana havia comentado consigo no ônibus. Lá procura por um menino de oito anos, chamado Leandro. Uma enfermeira a leva até o quarto do paciente.
-Ele está sozinho no momento. Seu pai precisou sair às pressas e pediu que ficássemos atentos a ele. Você é parente dele?
-Não, eu... Eu só sou uma amiga da mãe dele. – Disse Maria, considerando aquele breve momento de companhia de Rosana uma eterna amizade.
-Importa-se que eu fique aqui também?
Ao entrar no quarto, Leandro, ainda sonolento, dirige um olhar vazio à Maria. Ela caminha até ele com uma caixa nas mãos. A enfermeira permaneceu observando-os da porta.
-Quem é você? – Perguntou ele, baixinho.
-Eu sou Maria. E esse presente... – Ela olha para a caixa – Esse presente é teu. Feliz Natal, menino.
Maria prendeu o choro, enlaçando um nó na garganta. Era inaceitável assistir a uma cena daquelas. Uma criança, assim como Zózimo, que deveria estar esbanjando vida por todo canto. Uma criança sem cor, lívida, como se a cada suspiro deixasse escapar uma parcela considerável de suas forças, sua vida. Uma criança, agora órfã de mãe.
O menino, que tinha a cabeça completamente raspada, desembrulhou o presente e, ao notá-lo, fez que não gostou.
-Minha mãe já vai me dar um desses. – Sibilou, ao estar com o Red Car nas mãos.
-Foi sua mãe que pediu pra trazer, ela, ela... Ela precisou sair. – Mentiu – Ela disse que esse carro de controle remoto era o que você mais queria, não era?
Ele fez que sim com a cabeça.
Maria estava muito abalada e resolveu sair daquele quarto antes que a angústia lhe forçasse a derramar lágrimas diante dele. Olhar nos olhos daquela criança cortava sua alma.
O menino sentiu-se agradecido e a deteve, notando seu semblante caótico:
-Você parece nervosa. Aconteceu alguma coisa com a minha mãe?
Uma lágrima clara escorreu pela face negra de Maria. Lembrou-se de Zózimo e de como ele era saudável apesar dos pesares. Pensou em como seria feliz o seu Natal! Tantas pessoas passando por dificuldades tão superiores a sua... Seria injusto blasfemar ou praguejar contra a vida.
-Por que você tá chorando, Maria?
-Choro porque... Porque eu sou uma boba mesmo, é isso. Você é um menino lindo, igual ao meu.
-Você tem um filho, Maria?
-Tenho. O nome dele é Zózimo, ele tem quase sua idade. Quer que eu o traga aqui pra vocês brincarem juntos?
-Quem ia querer brincar comigo? Eu sou um doente. Eu nem tenho amigo.
-Agora você tem. – Afirmou, secando a lágrima em meio a um sorriso.
Ao chegar em casa, Maria abraçou Zózimo e disse que o Papai-Noel havia deixado um presente muito especial para ele em um lugar secreto. Entusiasmado, Zózimo mal pôde dormir naquela noite, de tanta ansiedade. No dia vinte e cinco de dezembro, ainda pela manhã, Maria o levou até a clínica. De início Zózimo estranhou o local.
Maria procurou por Leandro. Ele estava no jardim, junto do pai, que ainda não tivera a coragem de lhe revelar sobre a morte da mãe. Maria e Zózimo foram encaminhados por uma enfermeira até o mesmo jardim.
-Cadê o meu presente, mãe? – Indagou Zózimo, já impaciente.
Maria sorriu e apontou para Leandro. Leandro e Zózimo entreolharam-se pela primeira vez. Sob a luz amena do astro-rei, Zózimo e Leandro foram apresentados. Leandro explodiu de felicidade. Agora tinha com quem dividir seu tempo ocioso. Zózimo foi conquistado pelo carisma de Leandro. Ambos tornaram-se amigos pra valer em questão de minutos.
Este foi o presente de Natal de Zózimo. Um presente de preço inigualável, mais importante do que qualquer carro do momento. Um presente para toda vida: A vida.
Os dias passavam, irrompeu um novo ano. Zózimo e Leandro sempre brincavam juntos no jardim da clinica. Zózimo consolava lentamente o pequeno coração de Leandro, que por sua vez, quase entrou em crise ao saber da morte da mãe. Quando havia a permissão do médico, o pai de Leandro os levava para passearem na praia e tomarem sorvetes juntos. Em pouco tempo já faltavam as rodas dianteiras do Red Car e sua linda lataria vermelha já colecionava arranhões e amassos. O que era um Red Car diante daquela amizade sem fronteiras?
Mas até o Paraíso necessita da inocência de uma criança. E, dois meses depois, Leandro foi requisitado por Deus. Sua doença tornara-se incurável e o arrebatara da vida, da vida de sua família, da vida de seu melhor amigo.
Após receber aquela noticia, Zózimo pareceu esvair-se de tanta tristeza. Havia perdido o seu melhor presente de Natal.
O corpo estava sendo velado na própria clinica onde ficou internado. Zózimo fez questão de ir despedir-se de seu amigo. Implorou para que Maria o levasse até o velório. Maria atendeu suas súplicas. Na clinica, a tristeza tomava conta de todos. Até mesmo os funcionários daquele recinto já haviam tomado afeto por aquela simpática criança. Zózimo orou baixinho diante do caixão de Leandro e fez um pedido a Papai do céu, conforme o próprio referia-se. Pediu que um dia pudesse reencontrar-se com seu presente de Natal mais querido.
Já afastados do velório, Maria envolveu seu filho nos braços e o confortou:
-Papai do céu vai cuidar bem dele.
-Mãe... – Disse, olhando-a com pesar– Eu nunca mais vou ter um presente de Natal tão bom. Nem que o Papai Noel me dê mil carrinhos e videogames no próximo Natal. Eu descobri que o maior presente vem de dentro da gente e não das coisas das lojas.
Zózimo retornou ao velório. Maria ficou a observá-lo partir. “Toda morte nos deixa uma viva lição”, ela pensou, refazendo-se da comoção que lhe tomava aos poucos. Resolveu ir até o banheiro lavar o rosto. No caminho, surpreende-se ao encontrar D. Susana, que, bloqueada por um enorme vidro, tinha os olhos fitos no berçário.
Parou, hesitante. Aquela senhora a sua frente um dia a humilhou com frialdade; pessoas de sua estirpe teriam direito ao perdão? Não, recusar-se-ia a encará-la.
Andava apressada quando, já a uns dois metros à frente da velha, ouve um chamado.
-Maria! – Sobressaltou-se D. Susana – Você aqui...
Maria ficou ali, estática, por alguns segundos, de costas para a velha que a olhava fragmentada.
-Perdão, Maria.
Naquele momento, o coração de Maria refestelou-se em todo orgulho que ocupava seu interior, e, ao mesmo tempo, batia acelerado, tamanha surpresa que lhe acometera.
Virou-se para sua antiga patroa e, ainda sobre o pedestal da indiferença, encarou a mulher que se submetia àquele ato louvável, porém, difícil. Aproximou-se dela, lentamente.
-Fique sossegada. Não to armada, apesar de morar numa favela e ser preta. Deve ta mesmo boba de me ver aqui, não ta? Uma clínica chique dessas, e eu, uma miséria de gente perdida nesse mundo de luxo.
-Não, não diga uma coisa dessas! Eu... Eu preciso pedir seu perdão. Sabe, eu tentei tomar coragem para te procurar e... Mas eu não consegui. O meu orgulho foi superior.
-A senhora me acusou, me humilhou. Será que eu devo mesmo te perdoar? Tudo na senhora que tem de ruim é superior.
-Olha, eu preciso que me perdoe. Foi tudo culpa do meu marido. Na verdade, eu realmente quis testá-la na ocasião. O problema é que, naquele mesmo dia, o meu marido... – Pausou, muito envergonhada – Ele roubou o meu colar para acertar uma dívida de jogo.
-Então quer dizer que... Mas por que ele faria uma coisa feia dessas, gente? – Embasbacada.
-O Antonio é viciado em jogos. Ele se meteu numa encrenca, ficou desesperado. Fez o que fez, e eu, tola, inocente – Acusei você.
Maria titubeou, tentando assimilar aquela história que lhe parecia muito improvável.
-Perdoe-me por tê-la acusado injustamente, me perdoe pelas ofensas. O destino a trouxe até mim para que este perdão aconteça.
Maria hesitou por mais alguns segundos, apoiando as mãos na cintura, inquieta.
-Eu lhe pago o que for preciso. Eu lhe compro um colar como aquele. – Insistiu a velha.
Maria sentiu-se ofendida e respondeu, a altura:
-Não, D. Susana. Eu não quero dinheiro, eu não quero colar. Sabe por que?
Silenciaram-se, uma defronte a outra. Maria apossou-se da razão que lhe cabia e dela resolveu extrair uma lição. Uma lição que lhe fora ensinada há poucos minutos.
-Porque o maior presente vem de dentro da gente e não das coisas materiais. – Disse, lembrando-se das palavras puras de Zózimo - Eu perdôo a senhora pelo seu arrependimento, e não pelo seu dinheiro.
D. Susana abraçou Maria, selando a paz entre as duas.
-Veja só o meu netinho, Maria. Nasceu hoje. Será que aqueles sapatinhos caberão em seus pés?
Maria observou com doçura aquele pequeno ser. A vida que se foi, a vida que chegou. A vida. O melhor presente.

sábado, 25 de julho de 2009

Tempo


Oh tempo, se és mesmo amigo meu
Diga-me quando poderei embebedar-me
Em tuas dádivas?
As vezes chego até duvidar
De que és amigo meu!

Oh tempo!
Se és tu quem tem o poder
De tudo fazer
Por que não te adiantas
Em vir ao meu socorro?

Tu com seus dons
De as feridas apagar
As magoas perdoar
Ao passado retornar
Por quanto terei que te esperar?

Oh tempo!
Tu que és amigo meu,
Se de fato o é,
Passe bem ligeiro
E traga o meu amor arteiro!

***************************************************

Ricos foram os meus dias junto a ti
Agora, desse jeito
Precária tornou-se minha existência
Hoje, amanhã e sempre
Amar-te será minha meta
Enquanto houver luz, vida na terra
Lembrarei de ti com carinho
com todo o meu amor puro e sincero

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Dia do amigo é todo dia!


Aproveitando esta semana em que se comemora o “Dia do Amigo”, vou tentar me aventurar a escrever umas palavras sobre ter amigos, sobre ser amigo, falar um pouco a respeito desta dádiva de Deus que se chama amizade.




Convivendo com as pessoas nas mais diversas situações do dia a dia, sejam elas profissionais, acadêmicas, religiosas ou tantas outras possíveis situações nas quais lidamos com nosso semelhante, temos a oportunidade de criar e cultivar a amizade, conhecendo melhor as pessoas e se deixando conhecer. Conversando, sendo sincero, mostrando verdadeiramente o que somos e não o que temos, ou ostentando um lugar, uma posição que estamos ocupando em determinado momento de vida.

A amizade é mais do que “ter”, a amizade é “ser”. O amigo verdadeiro muitas vezes tem que chamar o outro no canto, falar o que precisa ser dito, e muitas o que precisa ser dito não é o outro quer escutar, mas o amigo fala, pois se é amigo mesmo não deixa o outro persistindo numa prática errada. Muitas vezes o outro não aceita, pensa que não é amigo e lá na frente, no futuro, quando sofre por aquele erro cometido e se arrepende, aí é que lembra do amigo e daquela conversa sincera e assim reconhece o que é a verdadeira amizade. A pessoa tem de ter zelo por seus amigos, precisa ter cuidado, carinho, atenção. Hoje em dia, neste mundo de muitos “contatos”, as pessoas precisam de atenção, precisam ser escutadas, precisam ter com quem falar, compartilhar dúvidas, sentimentos, emoções.

Não basta apenas adicionar no Orkut ou em algumas dessas redes de “relacionamento” que existem por aí. É preciso estar junto, é preciso saber como está a vida da pessoa, como estão seus sentimentos, seu momento de vida. Renato Russo já falava em sua canção, que “Muitos temores nascem do cansaço e da solidão...” e isso é uma verdade... Quantas pessoas entram em situações difíceis na vida por não ter com quem conversar, pedir uma orientação, que muitas vezes pode (eu já vi acontecer) direcionar a vida de uma pessoa para o bem.

Em meus anos de vida, que não muitos, mas que já me dão uma certa condição de falar alguma coisa, eu vejo que nos unindo fica mais fácil de nos desenvolvermos, para evoluirmos mais em nossas vidas. Convivendo com as pessoas, nos deparamos com as diferenças. É aí que o “bicho pega” (rsrsrsrs), aí é que a “porca torce o rabo” (rsrsrsrs), pois o ser humano acha sempre que está certo, que o modo que ele pensa é o certo e o outro sempre é o errado. Não é assim?Podemos até rir de nós mesmos, lembrando de situações que nos mostram que somos assim... Mas, para desenvolvermos amizades e convivermos melhor com os outros, precisamos construir em nós uma boa vontade, uma amplitude de visão que nos permita enxergar as situações por diversos ângulos.

Com isso, praticando esse bem querer, vamos aumentando nossas compreensões e desenvolvendo mais paciência com a gente mesmo, para ter mais paciência com as pessoas que estão ao nosso redor, para termos sempre uma boa vontade para receber as pessoas como elas são, pois em muitas situações não agradamos também e as pessoas também encontram um jeito de ter paciência com a gente. Assim, com bom senso, vamos mostrando o nosso lado bom e conhecendo o lado bom das pessoas. Para isso é preciso um trabalho de reconhecimento pela história de vida, de luta de cada um e termos a certeza e a fé que sempre poderemos aprender mais uns com os outros.

É tão bom ter amigos, é tão bom poder contar com as pessoas, é tão bom ter em quem pensar, em quem lembrar em situações difíceis e é tão bom compartilhar histórias de vida, de superação de limites que nos dão bom exemplo para também vencermos as nossas dificuldades e servirmos também de bom exemplo para nossos amigos, formando assim uma corrente forte em que podemos nos segurar para continuarmos seguindo em frente.


quinta-feira, 23 de julho de 2009

Animal Farm Trailer

"TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OS OUTROS." ( "A revolução dos bichos", George Orwell) . O texto de análise está abaixo deste trailer, em outra página.Obrigada pela compreensão.

George Orwell e sua fábula sobre a ganância e a corrupção.


O escritor nascido Eric Arthur Blair, que adotou o pseudônimo de George Orwell aos dezenove anos após renegar sua origem inglesa, sua fortuna e seu próprio nome, é mais reconhecido no Brasil pelo seu romance "1984", lançado em 1949, que faz uma previsão futurista e pessimista da humanidade pós guerra, vivendo subjugada pelo imperialismo que domina todos os passos do cidadão através de uma teletela a qual denominou Big brother, termo que deu origem ao nome e a idéia dos reality shows que se tornaram uma febre mundial. O Oxford Dictionary credita a ele também, a expressão guerra fria, que marcou a segunda metade do século.


Nascido na Índia subjugada pela Inglaterra em 25 de junho de 1903, teve uma educação aristocrática na famosa Academia de Eton, que o formou para fazer parte da polícia imperial britânica onde permaneceu por cinco anos, os quais lhe deram a oportunidade de viajar para diversos lugares, o que fez com que aumentasse o seu descontentamento com sociedade da qual fazia parte.
Abandonou seu posto, voltou para a Europa, trocou de nome e de vida radicalmente. Tornou-se operário de fábrica em Paris e depois tornou-se professor primário, em Londres.

Sua rebeldia intelectual e sua vivência proletária foram âncoras para que desse vazão a sua veia literária de uma maneira sempre coerente com sua postura ideológica voltada para a denúncia da miséria dos trabalhadores explorados, sobre corrupção e poder. Era inimigo do Fascismo, do Imperialismo e da desonestidade daqueles que se apoiavam no Comunismo, mas praticavam atitudes incoerentes com o que pregavam.

Defendia a nacionalização da "terra, das minas, das estradas de ferro, dos bancos e das principais indústrias". Foi para a frente de batalha na Guerra Civil Espanhola, morou em Marrocos, e em 1943 tornou-se editor literário de um jornal de alta circulação, Tribune, em Londres, quando começa a escrever uma fábula exibindo o totalitarismo e a face da burguesia na Rússia. Já beirando o final da guerra, Animal Farm foi recusado por vários editores britânicos que ficaram com medo de criticar o seu aliado . Mesmo assim, foi lançado em 17 de agosto de 1945.

Embora "1984" seja o seu livro mais famoso, o reconhecimento mundial como escritor deve-se a Animal Farm (traduzido no Brasil como "A revolução dos bichos"), escolhido pela revista Time como um dos cem melhores romances de língua inglesa e que consta na 31ª posição no ranking dos melhores romances do século XX da renomada Modern Library List. Não é pouca coisa, para quem foi considerado por alguns colegas de profissão, não como um autor literário, mas como um escritor de cartilhas políticas e panfletárias.

O autor morreu de tuberculose em 1950, com 47 anos incompletos. Sua fidelidade e engajamento aos seus ideais, seu conhecimento histórico e seu futurismo quanto a condição do homem em sociedade em face ao sistema representado não só pela política, mas por instituições como a religião, são motivos mais do que suficientes para que seja lido.

Animal Farm foi adaptado para várias versões entre cartoons, filmes e até música. Sua influência se extendeu ao rock progressivo do grupo Pink Floyd no seu décimo álbum "Animals" - maravilhoso por sinal; um dos melhores cartoons é justamente o primeiro, realizado em 1954 por Louis de Rochemont, uma produção já realizada à cores. Em relação aos filmes, há uma produção interessante realizada em 1984, mas o trailler apresentado aqui, faz parte de uma filmagem inglesa de 1999, feita para tv e dirigida por John Stephenson, que adaptou esta versão para que a narrativa fosse feita pela cadela da fazenda, que assume o papel principal, o que não ocorre no original.

O enredo começa com um velho porco (Major), que tem como sonho a vontade de que todos os animais sejam governados por si próprios sem a submissão e a exploração dos homens. Ele reúne os animais três dias antes de sua morte para lhes apresentar alguns mandamentos de uma nova era. Além dos mandamentos, ele lhes ensina uma espécie de hino que resume sua filosofia, exaltando a igualdade entre eles e os tempos prósperos que virão.Os animais se encantam com esta possibilidade, e para completar, o seu dono, um álcoolatra individado, não lhes dá comida, o que serve de estopim para o início da revolução, até que os animais expulsem os humanos de lá e mudem o nome da fazenda para Fazenda dos animais.

Com a morte de Major outros porcos levam sua idéia adiante: Bola de Neve e Napoleão. Enquanto o primeiro tem idéias de como torná-los mais independentes e se defenderem de possíveis ataques de humanos que querem ter a fazenda de volta, o segundo inicia uma lavagem cerebral junto aos outros animais mais ingênuos para tornar Bola de Neve um traidor, expulsá-lo e assim impor suas leis que serão modificadas à medida que o poder vai lhe subindo a cabeça e ele torna-se cada vez mais parecido com os homens, a ponto de vestir-se como um ditador, explorar o trabalho dos seus companheiro e passar a caminhar com duas patas.Os mandamentos criados por Major serão mudados junto com seu comportamento autoritário.

Os sete mandamentos:
1- Qualquer coisa que ande sobre 2 pernas é inimigo.
2- Qualquer coisa que ande sobre 4 pernas, ou tenha asas é amigo.
3- Nenhum animal usará roupas.
4- Nenhum animal dormirá em camas.
5- Nenhum animal beberá álcool.
6- Nenhum animal matará outro animal.
7- Todos os animais são iguais.

No final perceberemos que a situação dos animais era melhor com os humanos do que com o seu semelhante, que por conhecê-los melhor, sabe exatamente como fazer para explorá-los ao máximo.Aliás, sua abordagem continua tão contemporânea que eu particularmente adoraria assistir uma versão brasileira desta obra.Basta olhar para o Distrito Federal (entre outros representantes de nossas instituições, incluindo a "educação") que veremos quantos animais de quatro patas ficaram de pé rapidamente sugando a boa vontade e a capacidade intelectual do nosso povo - primeiro (sempre), a "pregação" igualitária ,sindical e supostamente intelectual, e depois, avião digno de marajá indiano e suas comitivas e funcionários que tiram férias 365 dias do ano com o dinheiro do povo ou aqueles com menos sorte, que fingem que trabalham e coçam "pulgas" o dia inteiro.. Só faltou incluir os terroristas, que canso de dizer, não se explodem e levam os outros sem razão...é que naquela época o sujeito ainda não tinha se rebelado de verdade. Vale à pena ler o livro e assistir o filme ou o desenho. Como estudantes de Letras, como futuros professores e como escritores, é nossa missão e dever nos atualizar e pesquisar constantemente para enriquecer o nosso conteúdo e disseminar o nosso conhecimento de maneira que a educação e a cultura sejam motivo de alegria e curiosidade para o nosso público formado pelos mais diferentes tipos de pessoas. Afinal, a reciclagem de idéias e a incorporação de novos conhecimentos é muito importante.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Código


Tal qual poesia em braile é minha pele para ti.
Um código perfeito, feito sob medida para tuas mãos
Onde poderá descobrir a textura de caminhos proibidoscom tamanha precisão e intensidade, só possíveis à visão do tato.


Para que devore cada pedaço de meu ser até que dentre os muitos sabores
saibas qual verdadeiramente te apetece.
Minhas curvas e contornos anseiam por teus adornos: laços, apertos, marcas e dentes.
Me olhe nos olhos.
Meus olhos castanhos, antes enigmáticos e profundos
agora retinas espelhadas, refletores do meu maior desejo.
Minhas mãos atrevidas
querem deslizar pelo teu corpo
buscando onde estão ocultos teus desejos
Minha boca entreaberta, minha língua molhada
ávidas por degustar teu sabor viciante
Meus ouvidos atentos
querem buscar onde estão sepultadas tuas blasfêmias
Nada de amarras
Quero prender teus passos com a liberdade do meu amor
Nada de planos
A não ser colorir cada um dos teus dias com um sorriso
Nada de mapas
Quero caminhar ao teu lado na direção do infinito.
Sem pudores.
Sem planos.
Sem panos.
Adentre minha alma, eu permito.
Te absolvo sem julgamento
Te absorvo. Suor, saliva e sêmem
Pois só você pode desvendar o que foi
feito sob medida para tuas mãos
Essa pele, capaz de esconder códigos e versos...

Hoje não estou para contos, estou para poesia. Com dois contos finalizados, senti que hoje minha energia estava diferente. Decidi trazer algo que escrevi para minha Caixa (de Pandora) e dividir com vocês, espero que tenham gostado.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Hoje é dia de flores!


Para mim, nenhum poeta discorreu tão bem sobre a alma feminina como Vinicius de Moraes. Ninguém nunca se mostrou tão admirado e apaixonado por nós, seres de Vênus, inquietas, impulsivas, intensas, como o poetinha. E especialmente hoje, me deparei com esse poema perdido no meio de minhas bagunças e me senti afagada, tocada pela gentileza de suas palavras... Ah! Se todos os homens fossem como Vinicius...Hoje não escreverei nada. Ainda me sinto inebriada pelas flores do meu poeta preferido. Espero que todas as mulheres que lerem esse texto sintam-se compreendidas e queridas como eu me senti hoje e aos homens, espero que esse texto lhes sirva de incentivo e inspiração.


“Porque você é uma menina como uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde,tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer,
o doce feito com leite condensado. E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram
sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas
estrangeiras. E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu
cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair
para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo. E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você
se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro. E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você
é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada",
a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois. E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa.
E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche
de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobre tudo porque você é uma menina com uma flor." Vinicius de Moraes

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Ensaio sobre a amizade


Antes de mais nada, quero desejar feliz dia do amigo a todos os amigos! Perdoem pela extensão do texto, porém, estou certo de que será uma leitura válida, reflexiva. Como definir a amizade... Fico com a definição de Clarice Lispector. "A amizade é matéria de salvação". Boa leitura a todos! Obrigado, Lohan Lage Pignone.


Necessito de um amigo
Necessito de um amigo
Que ria e chore comigo
Que me tire deste castigo
De não ter um amigo
Amigo pobre ou amigo rico
O que importa é que esteja vivo
Amigo que desabafe e que ouça meus lamentos
Amigo que saiba o que sinto por dentro
Amigo de confidência, amigo de freqüência
Amigo tanto nas horas fartas quanto na falência
Amigo tal qual a lua e o mar
Que formam uma aliança de luz no escurecer do lugar
Amigo que sempre divida
As tristezas e as alegrias de sua vida
Amigo que não tenha medo
De revelar os seus segredos
Amigo que lute pela minha vitória
Mesmo que ao final seja minha a glória
Amigo que diga calado
Se caminho certo ou errado
Amigo de toda partilha
Que sem mais nem menos já é da família
Amigo que realmente entenda o valor da amizade
E veja que esta é a solução para a humanidade
Amigo que conceda sua vida
Para deixar que eu prossiga
Amigo que não saia da cabeça
Mesmo que o resto do mundo o esqueça
Amigo que, por fim, desfaça minha necessidade
De viver sem ter um amigo por toda a eternidade

Assim escreveu José, o jovem sentado no canto mais afastado do pátio escolar. Nas proximidades ouvia-se uma contente balbúrdia uma reunião de amigos, talvez. Estariam jogando futebol, gude, falando sobre rock and roll, correndo atrás de borboletas, que seja.
E ali estava José, o jovem de cara pálida, repleta de espinhas, com um óculos pouco convencional repousado sobre o narigão, físico macérrimo. Estava bem longe das passarelas da moda. Tampouco sonhava com essa hipótese, ele costumava se olhar no espelho toda manhã. Só pela manhã, já era o bastante.Tendo as pernas encolhidas como suporte para o papel, ele relia o que acabara de escrever. Então, ouve-se o som do quique de uma bola. Uma bola encouraçada, agora rolando rente a si. Ele a olha, com desdém. Ela o olha, com seu olhar redondo, pedindo para ser tocada. Um abraçar, um chute! Ela adorava ser chutada. Quanto mais forte o pontapé que lhe desferiam, mais completa ela se sentia.
Por um momento, José hesitou, ainda olhando para a bola. Por um momento, ele se identificou com ela, apesar de não dominar qualquer habilidade que dispusesse de bola. Ele costumava ser tão chutado quanto ela. Esse é o problema da humanidade, pensou ele, radicalmente. As pessoas costumam confundir seres humanos com uma bola.
Logo aparece um jovem, de aparência mais saudável, físico rigoroso. Ele pede que José passe a bola para ele. José se desfaz da posição, apanha a bola e a lança nas mãos do rapaz.
-O que faz aí, José? Por que não se junta a nós, lá na quadra?
-Não, eu agradeço, cara. Estou bem aqui.
O outro virou as costas e saiu correndo, de volta para sua diversão. José ali permaneceu, e pensou: eles dizem isso apenas para me agradar. Eles não são e nem pretendem ser meus amigos.

“Trabalho escolar:
Discorra sobre a amizade, em qualquer gênero textual. Boa sorte.”
André ficou ali, sentado em sua carteira, com os olhos azuis fitos no vazio. O restante da turma iniciara os trabalhos. Ele levantou o sobrolho, admirando a disposição dos demais. Escreviam sem pestanejar. Bufou, e resolveu rabiscar alguma coisa no rodapé da folha do exercício. Desenhou a si próprio. Cabelos cheios e loiros, boca carnuda, pele clara e bronzeada pelos finais de semana dedicados ao surf na Zona Sul do Rio. A íris dos olhos ele pintou de azul – a tinta da caneta. O busto ele traçou com detalhes, bem como o abdômen. Repleto de pequenos traços quadriculados, denotando o famoso abdômen “tanquinho”. Os músculos dos braços, avantajados. Ele sorria enquanto o desenhava. Gostava de olhar para si mesmo. Desprovido de um espelho, ele se desenhava. Espelho este que observava mais de dez vezes ao dia.
Trinta minutos se passaram, a sirene soou. Todos guardaram seus materiais, e, ao irem evacuando a sala, deixavam seus trabalhos nas mãos da professora. André foi um dos primeiros a fazer isso. Estava apressado. A professora relanceou sua folha e o intercalou:
-Está em branco, André. Por que não escreveu absolutamente nada?
André se deteve, virou para a professora, com um sorriso debochado:
-Professora... Vê se eu tenho cara de quem escreve sobre amizade. Eu vivo as amizades.
-Ah... Vive. Você não sabe o que é amizade, André.
-Quem é você pra dizer isso, Dona Arlete? Nem marido tem. Quanto mais amigos. Ninguém te suporta nessa escola. Quanto a mim... – André abre os braços, rindo – A torcida do Flamengo é minha amiga! Por que será hein Dona Arlete? Será mesmo que eu não sei o que é essa tal amizade? Olhe para si mesma!
A professora ficou paralisada, olhando-o virar as costas e sair às gargalhadas da sala. Os outros o seguiram, exaltando-o por aquele “feito”.

Eram quatro e quinze da tarde quando o telefone celular de Fábio tocou.
-Aurélio! Como vai, meu amigo?
-Vou bem. E você? Há quanto tempo não nos falamos.
-Ah, que isso! Nos falamos tem o que... – Breve pausa – Um mês, cara!
-E você acha pouco tempo? Que seja... Da última vez que nos falamos você me disse que estava com problemas, não quis me contar o que era. Fiquei preocupado.
-Não foi nada, amigo. É a Laura, que se tornou uma consumista compulsiva. Meu dinheiro tem sido destinado aos prazeres dela ultimamente.
-Você está precisado? – Preocupado.
-Não! Imagina! De qualquer modo, obrigado.
-Menos mal. Mas, indo direto ao ponto, não está afim de ir àquele velho bar que costumávamos freqüentar, o Rei do Taco? Estou doido pra te vencer na sinuca, sabe que até hoje aquela revanche não saiu da promessa? – Disse, com animação.
-Pra quando, cara... – Esquivo.
-Ora, hoje à noite. Estou liberado hoje.
-Sabe, eu já combinei de sair com a Laura hoje. Ela ta doida pra ver um filme lá, que estreou essa semana. Marcamos de ir hoje, sem falta. Você se importa, Aurélio?
-Não, não... Mas é uma pena. Depois terei que viajar novamente a trabalho, devo ficar uns dois meses fora. Mas tudo bem.
-Ah, sendo assim, eu aceito ir, ta fechado.
-Não, esqueça. Ir somente para me agradar. Além do mais, lá você ficaria pensando na Laura, e no provável aborrecimento que terá causado nela ao dizer que ia sair com um amigo.
-Não, eu vou! Às nove, pode ser?
Nove e meia. Aurélio estava sentado, ao balcão de um bar muito bem iluminado, de requinte visível. Ele bebia um Martini. Conferiu o horário em seu relógio de pulso. Estava com o semblante enjoado. Levantou-se, largando a taça com a bebida sobre o balcão. Caminhou até a área onde se localizavam algumas mesas de sinuca. Estavam todas ocupadas. Numa delas, dois amigos riam sem escrúpulos. Um contava uma piadinha, entre uma tacada e outra. O outro retribuía com jogadas incríveis, soltando alguns palavrões surpresos do adversário. Adversário... Não havia adversário ali. Era algo muito puro, natural. Os sorrisos, os apertos de mãos nos finais das partidas. Os abraços. Aurélio observava a tudo aquilo, com a cabeça longe... Os olhos lacrimejantes denunciavam seus pensamentos. Velhas lembranças de um passado nem tão distante assim. Momentos que se perderam com o tempo, com as circunstâncias. Promessas de uma amizade eterna que, só agora, ele podia entender que foram ditas nos ápices das emoções. Mas as lagrimas secaram, e os risos, ora, já não havia mais graça pra sorrir. Mais uma bola encaçapada. Já eram dez da noite quando Aurélio deixava aquele bar. Estava desolado. Não ligou para o amigo.

“Dizem que o cachorro é o melhor amigo do homem. Eu não acho. O cachorro não é amigo, ele é um ser obediente a seu dono. Apenas isso. Resultado a inimizade do mundo, entre os humanos. Fossem os homens unidos por laços fraternais inseparáveis, os cachorros seriam animais selvagens”.
José caminhava por um parque, recitando em murmúrios essas palavras. Andava cabisbaixo, como se não houvesse pessoas ou postes pelo caminho. Como se ele fosse só naquele mundo...
Então ele ouve alguém chamar pelo seu nome. Ele ergue a cabeça, e para. Ao seu lado, estavam dois rapazes, colegas de classe.
-José, ta perdido aí? – Pergunta um deles, risonho, chamado Carlos.
-Perdido... – Disse, confuso.
-E aí, ta preparado pra amanhã, velho?
-Preparado? Eu? Pra que?
-A festa da Camila! Vai me dizer que... – Diz o outro, de nome Douglas.
Os dois amigos se entreolham.
-É o aniversário da Camila, que estuda com a gente. Ela convidou a turma inteira.
-Pode-se considerar inteira me excluindo?
-Toda regra há exceção.
-Não seja babaca, Douglas. Não vê que o moleque ficou bolado com isso.
-Eu não to bolado. Eu já me acostumei com isso.
-Como assim, cara... Não é isso que você ta pensando. Olha, tenha certeza, sabe como são essas meninas... Você pode não fazer o tipo dela, nem das amigas dela.
-Você não fuma, nem bebe. Isso é um fator negativo.
-Concordo, negativo. Negativo para mim. – Rebate José.
-Digo negativo em relação ao social, meu chapa! Quem quer um convidado espantalho desse na festa?
José abaixa a cabeça.
-Douglas, pirou cara? Não liga pra ele Zé. Olha, eu posso falar com a Camila.
-Não! Eu não quero que fale com ninguém! Não falem mais comigo também, seus idiotas. Façam ótimo proveito dessa festinha amanhã.
José prossegue, agora a passos rápidos e firmes.

Há uma festa. Uma discoteca eletrizante. Os corpos se movimentam freneticamente. As bebidas são consumidas com abundancia. Alguns a desperdiçam, despejando champagne nos outros, ao léu. A música alta estremece o cômodo. Tudo se passa dentro de uma casa.
André faz sinal para que o DJ abaixasse o volume do som. A luz se acende. Ele sobe sobre uma mesa, no centro da sala, e discursa, em alto e bom som:
-Galera!!! Meus amigos, isso é êxtase puro!!! Continuem assim, vamos varar a noite, muita bebida, balinha e claro, orgia! Não quero ninguém desanimando, hoje sou eu quem manda nessa porra!!! Solta o som DJ!
E todos ovacionam André. Ele pula da mesa, e logo se agarra a uma mulher, que o beija. Em seguida, vem um rapaz, bagunça seu cabelo e diz:
-Amigão!! Você é o cara!
E sai, gritando e pulando, tomado por toda a euforia e os efeitos que uma festa daquele tipo produzia no ser.

Aurélio vem caminhando pela calçada de uma rua pouco movimentada. Está vestido com uma roupa social, carregando uma mala preta. Parece cansado. Está voltando de uma viagem, a qual foi destinado pela editora em que trabalha, como redator. Ele pára em frente um grande portão. Pelas frestas das grades do portão, podia se ver um lindo jardim de fachada e, mais adiante, um adorável sobrado de paredes vermelhas. Aurélio sempre conviveu próximo à natureza. Esse cultivo o fazia bem. As rosas vermelhas do seu jardim, assim que desabrochavam, causava-lhe um brilho no olhar indescritível.
Antes de caminhar até o sobrado, ele confere sua caixa de correio. Encontra duas correspondências. Ele as pega e leva consigo; já no aconchego do lar, após um banho revigorante, Aurélio senta-se em sua confortável poltrona e resolve abrir suas correspondências. Ele lê o remetente do primeiro envelope: “CEDAE”.
-Hum... Conta, isso não me importa agora.
Ele lança o envelope no chão. Pega o outro envelope. “PROMOÇÃO REVISTA LA’TRAVIATA”.
Curioso, ele abre o envelope com avidez. Logo começa a ler o conteúdo daquela correspondência... Seus olhos se esbugalham. Extasiado, ele salta da poltrona, jogando o envelope para o alto.
-Eu ganhei! Ganhei!!
Em seguida, após muita comemoração, ele abranda o espírito, respira fundo, e pega seu celular. Ele disca para alguém.
-Alô?
-Quem está falando? – Indaga a voz de uma mulher, do outro lado da linha.
-Esse telefone não é do Fábio?
-Sim, é do meu homem sim. Quem deseja falar com ele?
-Diga... Diga que é o amigo dele, Aurélio.
A mulher, Laura, faz uma expressão enjoada, larga o celular sobre a cama e vai chamar Fábio. Aurélio aguarda, ansioso.
-Aurélio?
-Meu amigo! Como vai?
-Vou bem... Olha, antes de mais nada, me desculpa por aquele dia, eu me esqueci realmente, tive vergonha de te ligar depois, eu...
-Esqueça, esqueça isso. Preciso te contar uma grande novidade, não consigo guardá-la só comigo nem por mais um segundo!
-Ora, diga então... – Disse, a um misto de alivio e contentamento.
-Eu fui sorteado numa promoção, de uma revista a qual assino mensalmente.
-Ganhou um kit primeiros socorros, é? – Gracejou.
-Ah, deixe de bobagem! – Riu – Será que uma viagem para a Itália, com todas as despesas pagas e direito a um acompanhante é melhor do que um kit de primeiros socorros?
Fábio ficou embasbacado.
-Cara... Meus parabéns!
-Putz, a ficha ainda não caiu, eu nunca ganhei nem aquelas rifas escolares com vinte nomes, lembra que disputávamos quem vendia mais?
-Lembro, claro. Eu sempre te vencia.
Os dois sorriram pelo telefone.
-Olha... Não quer ser meu acompanhante?
-Co, como?? Ir para a Itália, com você? – Gaguejante.
Surpresa, Laura olha para seu namorado.
-Sim, por que não? Você é o meu melhor amigo. Não tenho outra pessoa a quem convidar... Você foi a primeira pessoa que pensei.
-Nossa... Obrigado... Eu nem sei o que dizer.
-Diga que vai. Será daqui duas semanas.
Laura se aproxima de Fábio, abraçando-o.
-Bem, eu preciso... – Ele olha para a namorada, de esguelha - Eu preciso pensar.
-Ainda precisa pensar?
-É, eu tenho uns compromissos aí... Mas de qualquer maneira, eu estou muito agradecido, muito mesmo. Amanhã, sem falta, eu lhe dou a resposta.
Aurélio balbucia, como quem pressentisse uma recusa.
-Está bem. Eu espero. Espero que não decline meu convite. Quero que divida essa felicidade comigo, amigo.
Fábio sorri, sem graça.
-Claro. Então... Abraços, e... Até amanhã.
-Até, amigo.
Fábio desligou. Estava pensativo.
-Eu entendi bem ou o seu amigo o convidou para ir a Itália com ele? – Disse Laura, enfatizando maliciosamente a palavra “amigo”.
-É, foi isso, Laura. Ele ganhou uma promoção lá, de uma revista. Tem direito a um acompanhante.
-E por que justo você?
-Ora, ele é meu amigo, você não sabe disso?
-Amigo... Será que você não enxerga, amor? Esse cara nem namorada tem. Ele é... Estranho. Vai me dizer que ele não tem mais nenhum amigo?
-Laura! – Exclamou, perplexo. – Eu não acredito que você está insinuando isso.
-Eu não estou insinuando nada. Serei mais direta, então: o Aurélio é gay. Ele ama você.
Fabio oscilou pelo quarto, inconformado com aquelas palavras de Laura.
-Você não sabe o que ta dizendo, você pirou!
-Há, eu pirei? E você está fingindo que não vê! Não é por minha causa que você recusa os convites dele. Você sabe muito bem o que está acontecendo!
-Eu sei? Pelo amor de Deus! Então quer dizer que dois homens não podem ter uma relação de grande amizade? Laura, eu abri mão do meu melhor amigo por você. Você toma todo o meu tempo, todo o meu dinheiro!
-Ah, já entrou na parte financeira! Tinha que falar disso! Esse é seu problema.
-Olha, eu não quero discutir com você. O Aurélio é meu melhor amigo, desde os tempos de escola, e está acabado. Ele nunca... Ele nunca demonstrou ser nada disso que você está pensando.
Os dois se olham profundamente. Laura esboça um ar de sorriso.
-Que nós estamos pensando. Agora me dá licença, eu tenho mais o que fazer.
Ela sai do quarto. Fábio fica ali, estático, reflexivo. Lá se foi a magia da amizade.

Era noite alta. As luzes da cidade iluminavam um jovem desnorteado, caminhando por uma passarela. A mais alta do lugar. Seus olhos estão vermelhos, seu rosto, mais pálido do que nunca. Vestia um casaco espesso, com um capuz preto. Estava frio. Seu corpo estremecia, mas não só de frio.
José se debruça no gradil da passarela. Um vento gélido o atinge. Ele admira a cidade, a calmaria no tráfego de automóveis, alguns bons metros abaixo. As listras brancas que “decoravam” o asfalto cinzento o fizeram sorrir, embriagado de um contentamento que ninguém sabe a origem. Nem mesmo ele.
José sobe sobre uma barra de metal que compunha o gradil. Continua olhando para baixo.
-Sem podium de chegada ou beijo de namorada... – Sussurra.
Ele fecha os olhos com força. Mesmo assim, algumas lágrimas conseguem escapar.
-Ei!
O grito vem de perto. Alguém na passarela. Um homem.
-Ei, você! Não faça isso! Não pula!
José abre os olhos, assustado. Olha para o seu lado direito. Em sua direção, vinha um homem correndo. O homem se aproxima.
-Não se aproxime! – Adverte o jovem suicida.
O homem pára, ofegante.
-Se der mais um passo, eu pulo!
-Não faça isso, cara.
-Eu não te conheço. Sai daqui! Me deixe morrer em paz!
-Você não está em paz. Você quer encontrar a paz na morte, mas não conseguirá... Tirar a própria vida é se condenar, por toda a eternidade...
-Como você sabe que existe a eternidade?
-Como sabe que não existe?
-Eu prefiro que acabe tudo. Que não haja mais nada. Que seja um abismo, sem vozes, sem presenças. A solidão, completa! Antes a solidão do abismo do que a solidão dos farelos que são trucidados nesse liquidificador infernal.
-Você é um poeta... Como se chama?
-Meu nome não ficará na história.
-E você acha que se matando o seu nome entrará na história?
-Hoje é meu aniversário! – Berrou, dolorosamente.
As lágrimas agora saíram desgovernadamente.
O homem o olhou com tremenda compaixão.
-Quer que sua vida entre em desfecho no mesmo dia que ela veio ao mundo?
-Meu aniversário... Eu não tenho a quem convidar... Os vizinhos são uns velhos que não se cansam de me bajular em troca de serviços. Meu pai é um alcoólatra, que nem sequer lembrou do dia de hoje. Dei banho nele, troquei a roupa dele... Minha mãe fugiu de casa quando eu tinha cinco anos. Nem me lembro como ela era... Meu pai rasgou todas as suas fotografias.
-E quanto aos... Amigos?
-Ah! Você não disse isso, disse?!
-Você não tem amigos, certo? – Disse, tentando manter o tom de voz ponderado.
-Meus livros. Meu caderno, meu lápis. Eles me desejaram parabéns, sabia? Eu escrevi isso, em todos eles. “Parabéns, parabéns, parabéns... Hoje é seu dia”.
-Vamos, desça daí. Hoje é seu dia de viver. Venha comigo.
O homem dá dois passos em direção a José.
-Eu já disse pra não andar!
O homem cessa o andar.
-Hoje eu briguei com meu melhor amigo... Meu ex melhor amigo. Um homem que não sabe preservar uma amizade. Não soube reconhecer o poder desse amor tão puro, tão casto. Quando éramos jovens, me lembro como se fosse hoje... Fizemos um pacto. Uma aliança eterna. Nada nos separaria. Nada nem ninguém.
-A amizade de vocês esfriou, imagino. Ele se casou, teve filhos?
-Não, apenas uma namorada fútil, preconceituosa. Uma vadia.
-Ela trepa com ele. Você não, seu imbecil.
Aurélio sorriu, amargurado.
-Sabe... Quando queremos ser amigos de alguém, temos que criar pontes para isso. Ele destruiu a ponte que nos unia. E você, José? Você algum dia construiu essa ponte?
José inclinou a cabeça, mudo.
-Está vendo essa passarela, de onde você quer se jogar? Ela liga um extremo a outro. Ela está por cima de todo o alarido das ruas. Os carros, os atropelamentos, os guardas de transito, buzinas, pessoas correndo. Uma passarela. Superior a todas as adversidades. Você tem idéia de como uma construção dessas é demorada? Você acha que as passarelas são construídas para que jovens como você se joguem delas? Pois bem. Se você disser que sim, que seja algo mútuo.
Aurélio se aproximou de José, sem temer sua reação, e subiu no gradil. José o olhou espantado.
-Que vai fazer?
-Se não seremos amigos nessa vida... Quem sabe na próxima? Mas é arriscado. Vai que não exista mesmo a tal eternidade.
-Não, você é louco! Desça daí! Eu não pedi que morresse comigo!
-Eu não tenho mais razões pra viver. Me dê uma razão, rapaz. José olhou novamente para baixo. O asfalto, as listras brancas... Uma vertigem. Ele torna a olhar para Aurélio.
-Você quer mesmo ser amigo de um louco suicida?
-A ponte está criada. Basta caminharmos sobre ela. E não pularmos dela.
Aurélio estende a mão a José enquanto, com a outra, se apóia no gradil. José hesita, e, finalmente, segura a mão de Aurélio. Os dois recuam um passo abaixo. Estão a salvos do perigo.
-Foi o nosso primeiro aperto de mãos. – Disse Aurélio.
Eles riem. José seca as lágrimas, atordoado. Aurélio, também emocionado, o abraça.
-Então você gosta de escrever, rapaz... Traga os seus amigos até mim. Você terá uma surpresa. – Disse Aurélio, enquanto o enlaçava com um braço por cima dos ombros.
Ambos foram caminhando, até o fim da passarela, sob as luzes da cidade.

“Foi um grave acidente”, anunciou a médica aos pais do jovem. O semblante arrasado da mãe quase não permitiu que a doutora prosseguisse.
-Ele teve a coluna vertebral afetada... Sinto muito, senhores. O André ficará paraplégico.
A mãe foi consolada, nos braços do pai. A médica cumpriu seu papel. Era o fim de um trágico episódio. Agora, hora de recomeçar.
Já havia uma semana que André estava prostrado no leito daquele hospital. Já estava em um quarto, livre das mesas cirúrgicas. Às três horas da tarde, uma psicóloga, amiga da família, ia visitá-lo, todos os dias.
-Como se sente hoje? – Perguntou ela, sentada em uma cadeira, rente a cama.
-Eu não consigo sentir nada. Minha vida acabou.
-André, nós já conversamos sobre isso. A vida continua, basta você querer. É como você estar assistindo um filme, em um dvd. Você pausa o filme para atender ao telefone. Ele só terá continuidade se você apertar o play. Depende de você.
-Minhas pernas... Como vou surfar, doutora? Como vou dançar, correr? O meu filme foi paralisado para sempre.
-Assuma o controle dele. Lute por você. Quantas pessoas não vivem situações semelhantes, piores, até.
-Estou aqui há uma semana... Ninguém veio me visitar.
-Você se refere aos seus amigos?
-Meus amigos, há – Ele sorri, com agrura – Eu não sei o que é amizade. Nunca soube.
-Tudo foi uma ilusão. A realidade precisou ser drástica em sua vida, para que você despertasse. Fim da quimera.
-Veio um advogado aqui. Da família do meu... “Amigo”. O desgraçado disse que eu estava dirigindo o carro. Ele me entregou.
-Você queria que ele mentisse?
-Ele podia ter dito que foi o Cláudio. Estava morto mesmo no carro! Mas não... Preferiu me entregar, dedo-duro. Agora ainda vou ter que pagar indenização, descobriram que eu estava de porre.
-A verdade sempre vem à tona. Melhor que seja logo no início. O sofrimento, a angústia, nada disso se protela.
-Quem estará ao meu lado para me ajudar, doutora? – Disse, com os olhos marejados.
A doutora vacilou.
-A sua família... E eu. Eu estarei.
-Quanto vai receber por isso? É o seu trabalho, afinal.
-Por que não consegue enxergar o sentimento humano? Por que tudo para voce é superficial, material?
-Voce está sendo paga pra descobrir isso.
-Eu não estou sendo paga, André. Vou relevar a ofensa devido o seu estado.
Neste momento, entra uma mulher no quarto. É a fisioterapeuta.
-Hora dos exercícios, meu querido. – Anunciou ela.
A psicóloga se levanta, se despede friamente de André, e se retira do quarto. André fica submetido aos cuidados da fisioterapeuta. Sua nova rotina de vida estava apenas começando...

Aeroporto Tom Jobim – Rio de Janeiro
Aurélio e José caminhavam lado a lado, rumo ao embarque no avião que os levaria diretamente para Roma, na Itália. Junto deles, havia mais duas mulheres, e um guia turístico. Agora, José tinha as faces rosadas, nem tantas espinhas como antes. Seus cabelos, antes opacos, agora estavam sedosos e vistosos. Vestia-se com mais janota.
Aurélio também aparentava um senso de humor mais apurado. Já havia se recuperado bastante do baque que foi o fim de uma amizade de anos.
Já no meio do trajeto rumo ao avião, Aurélio ouve alguém gritando pelo seu nome, desesperadamente. Ele e José olham para trás, assustados.
-Quem é aquele? – Indaga José.
-Fábio... – Responde, incrédulo.
Fábio está detido, por dois seguranças. Aurélio resolve ir até lá.
-Aurélio, pelo amor de Deus, meu amigo... Não me abandone... – Aos prantos.
Aurélio pede aos seguranças que dêem licença por um minuto.
-Fábio, eu não posso demorar, diga o que quer de mim.
Fábio o abraça fortemente, chegando a dar um solavanco em Aurélio.
-Eu amo você, Aurélio. Só agora eu pude perceber isso.
-Por que só agora? Não venha me dizer aquela velha máxima, que só damos valor às coisas quando a perdemos.
-Não é isso, quer dizer, é isso também.
-Tarde demais. Não se deve esperar perder um amigo para valorizá-lo. Isso é covardia.
-Aurélio, eu terminei tudo com a Laura. A gente brigou feio, eu quase até bati nela!
-Bater nela? Você enlouqueceu!
-Eu quero te pedir perdão. Vamos ser como éramos antigamente. Me perdoe pelas palavras que dirigi a você naquela discussão.
-Você insinuou que eu era gay. Isso foi... Uma punhalada.
-Me perdoe...
Aurélio hesitou. Seus olhos se encheram de lágrimas.
-Eu te perdôo. Sabe por que? Pois não consegui me libertar da idéia de que já não somos mais amigos. E amigos... Sabem perdoar. Amigos de verdade se amam. Dois homens podem se amar. E o que é a amizade senão a forma mais pura do amor?
Fábio o abraça, muito agradecido.
-Você é um grande homem, Aurélio.
-Seja feliz, Fábio. Não posso perder minha viagem.
-Então irá sozinho mesmo?
-Não. Eu tenho um novo amigo. Ele se chama José. Você ainda o verá liderando as listas de vendagem de livros. Adeus, e... Se cuida, viu?
-Pode deixar.
Apertaram as mãos. Fábio viu o amigo sair às pressas em direção ao avião, e dirigiu-lhe um tímido aceno, um adeus.

André está acomodado em sua cadeira de rodas na quietude do seu quarto, lendo um livro. A porta do quarto se abre. É a sua mãe.
-Olá, meu filho. Quer que eu peça a Norma pra trazer seu lanche?
-Não, obrigado, mãe. Estou lendo, me deixe só. Depois eu como.
-O que está lendo? - Se interessa a mulher, se aproximando de André.
-Se chama “Alguma coisa sobre amizade”... – Diz, melancolicamente.
-Oh, meu querido... – Confortou, afagando seus cabelos – Não fique assim. Nenhuma daquelas pessoas que conviviam com voce merecem sua amizade. Você é uma boa pessoa.
-Eles só queriam meu dinheiro. Farras, zoação. Eles me sugavam; e eu... Eu confundi amizade com interesse. Mas estou me conformando. Quer melhor amizade que esta? Um livro?
A mulher o olhou com piedade.
-Pois então, não vou mais atrapalhar você com a sua companhia. Depois eu volto.
Ela beija o rosto do filho e sai do quarto.
André repousa o livro sobre uma mesa. Na mesma mesa, ele faz uso do seu computador. Ao acessar a página do seu orkut, ele vê, na lateral direita, no item “amigos”, um número zero, indicando que não havia nenhum amigo adicionado. Ele vai em “editar perfil”. Em seguida, apanha o livro que estava lendo e abre uma determinada página, demarcada pelo marcador de livros. Repousa o livro aberto sobre a mesa, diante de si. Faz a leitura da página de seu interesse e se dirige ao teclado. Ali, ele digita algumas palavras no item “quem sou eu”, retiradas do livro.
Enquanto digitava, as lágrimas rolavam em suas faces. Aquele era o desfecho. Um jovem, entrevado, clamando por uma amizade que nunca existira em sua vida. Ele salvou as modificações. E assim ficou a sua nova página no orkut...

Quem sou eu: Necessito de um amigo
Necessito de um amigo
Que ria e chore comigo
Que me tire deste castigo
De não ter um amigo
Amigo pobre ou amigo rico
O que importa é que esteja vivo
Amigo que desabafe e que ouça meus lamentos
Amigo que saiba o que sinto por dentro
Amigo de confidência, amigo de freqüência
Amigo tanto nas horas fartas quanto na falência
Amigo tal qual a lua e o mar
Que formam uma aliança de luz no escurecer do lugar
Amigo que sempre divida
As tristezas e as alegrias de sua vida
Amigo que não tenha medo
De revelar os seus segredos
Amigo que lute pela minha vitória
Mesmo que ao final seja minha a glória
Amigo que diga calado
Se caminho certo ou errado
Amigo de toda partilha
Que sem mais nem menos já é da família
Amigo que realmente entenda o valor da amizade
E veja que esta é a solução para a humanidade
Amigo que conceda sua vida
Para deixar que eu prossiga
Amigo que não saia da cabeça
Mesmo que o resto do mundo o esqueça
Amigo que, por fim, desfaça minha necessidade
De viver sem ter um amigo por toda a eternidade. Autor: José Campos da Silva